Dois modos de sair das notícias

Diário da Peste. Dois comandantes afundam um navio

Diário da Peste, por Gonçalo M. Tavares


Diário da Peste,

11 Abril
Dois modos de sair das notícias: religião e matemática.
Há mais, claro.
Uma frase de Breton: “o acto de amor e o acto de poesia são incompatíveis com a leitura dos jornais em voz alta.”
Nestes dias as incompatibilidades aumentaram.
Mas sim, dois modos de sair das notícias: religião e matemática.
Um matemático do século XX, Edward Gassner, pediu ao sobrinho “para dar um nome a um número que tivesse uma centena de zeros”.
O miúdo deu o nome: Googol.
Lê-se: gugol.
O googol é o 1 seguido de cem zeros.
É a unidade de medida de um número enorme.
7 mil googol, por exemplo.
O nome da google veio daí.
Foi um erro de digitação.
Não é o infinito, mas quase.
O último zero está sempre depois do sítio onde chegas a galope e à velocidade da luz.
Gogol é também o nome de um grande escritor russo.
Imagino a unidade de medida usando o nome do escritor russo.
Dois Gogol, 7,3 Gogol.
A avenida Névski é a Avenida central de São Petersburgo e de muitos livros de Gogol.
A avenida Névski está por estes dias bem amedrontada.
Já não se sai à avenida Névski para se ser visto e admirado pelos vestidos ou fatos que se leva.
Sai-se rapidamente para ir buscar o urgente.
Ser admirado ou invejado pelos outros não é urgente.
O medo não tem unidade de medida.
Não se mede em metros ou quilogramas.
Talvez o medo também não tenha um zero que seja o último.
Talvez o medo seja uma substância googol mas sem fim.
Espanha começa a distribuir máscaras nos transportes públicos.
“O sol cozinhou o homem/E a geografia determinou os acontecimentos”. Raul Bopp, Brasil.
Há medo nas favelas brasileiras e as máfias criminosas tentam controlar esse medo, ameaçando.
Medo x Medo x Medo x Medo.
Hoje sol. Amanhã também sol, dizem as previsões.
Mas depois chuva. Segunda, chuva, terça, chuva, quarta, chuva, quinta, chuva, sexta, chuva e sábado, chuva.
Depois não aparece no ecrã.
Os dias que não aparecem no ecrã estão fora do futuro.
O primeiro Ministro sueco sente “que não fizeram o suficiente.”“Profissionais de saúde dançam para esquecer o stress”.
Na Grécia, uma refugiada foi obrigada a pagar uma multa por ter saído sem autorização.
Em Lesbos, Moria, no regresso do hospital para o acampamento.
Não levava o documento de autorização, nem tinha enviado um sms oficial a pedir para sair.
As multas a refugiados são retiradas do dinheiro do subsídio que recebem.
Dizem que a multa é de 150 euros.
O subsídio vai até 550 euros por mês.
Algumas multas foram também passadas a pessoas sem abrigo.
Causa: 'por deslocação vã/sem motivo'.
Mas estas multas não foram pagas, claro. Depois dos protestos.
A minha amiga grega, Athena, diz que todos sonham com uma deslocação vã.
Um dos bens mais valiosos nestes dias - na Grécia e na Avenida Névski e noutros lados: uma deslocação vã.
Uma nova moeda: troco uma deslocação vã por dez com objectivos concretos.
Do vizinho vem música clássica.
Pensar em música útil e inútil.
O que será música inútil e música vã?
Um discurso numa universidade há uns tempo, Obama.
“Deixem me ser o mais claro que se pode ser: na política e na vida, a ignorância não é uma virtude.
Não é ser cool nem politicamente incorreto, nem é ser contra o sistema, é simplesmente ser ignorante.
Não é cool não saberes do que estão a falar."
Os estudantes riem-se.
Tento perceber em que Universidade foi isto, não descubro.
A ferida da Roma é lambida pela Jeri, uma colaboração clandestina.
É impossível uma ferida sarar se os companheiros endeusam essa ferida.
Não dar atenção àquilo que dói. Lições rápidas.
Manu Chao e uma alegria também rápida e diária, guitarra.
O som de vocalizos na sala ao lado.
De novo, a imagem do filósofo Wittgenstein a afastar de si o relógio para começar a rezar.
Rezar é o que acontece entre um momento e o momento seguinte.
Ele não disse isto, mas podia ter dito.
A mudez que se coloca entre uma palavra e a seguinte.
Domingo de Páscoa.
Quem tiver relógio que o coloque em cima da mesa.
É impossível chegar atrasado a certos encontros.
Não vai ser necessário: nem relógio nem pressa.
Paco Ibanez e outra guitarra: “Palavras para Julia”.
Uma amiga manda sucessivas mensagens:
Outra coisa que tenho vindo a reparar, diz ela.
É que perdi o olfacto.
Acho que deixou de ser necessário, diz.
Digo-lhe que isso é um sintoma perigoso.
Não, responde ela, estou saudável.
Sem estímulo o olfacto fica preguiçoso, explica. É isso.Não há ninguém para cheirar, diz.
Nesta Páscoa, espero recuperar o olfacto, disse ela ainda.
E depois disse que às vezes vai aos vasos cheirar a terra.
Expresso, 12 de abril de 2020

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