Segunda leitura




Por Luísa Costa Gomes


Third Girl
Pintura sobre livros, de Mike Stilkey


Não sei se mostro grande satisfação quando alguém me diz com apreço que leu o meu livro de um fôlego. “Lê-se muito bem, lê-se depressa, não consegui parar”. Não é que aconteça com frequência, estamos no domínio do ficcional. Ler depressa e bem, despachar um livro em duas penadas, fechá-lo com alívio, ir rapidamente tomar um duche e sair para jantar, depois um espectáculo, também ele rápido, mais um livro, sempre a despachar, e ala, dormir, outro livro, outro espectáculo. Tudo isto me faz pensar no tempo, no trabalho e no prazer que o livro me deu a escrever. Sou ingrata, admito. Mas este grande desajustamento entre as experiências de escrever e de ler, que à partida deviam ser mais coalescentes (v. “coalescência”, Délio Santos, in Instauratio Magna, uma das instâncias cómicas do que tento descrever), o desajustamento, digo, é fonte de mal-estar e perplexidade. Nisso não difere de qualquer outro desajustamento.

Mas se alguém me diz que leu, sim, mas devagar e penosamente, que tem de ler outra vez, não percebeu nada, aquilo é muito denso… é confuso, é complicado, difícil, pois não me encontra mais contente! Estimula-me outro receptor da enervação, a que idealiza, fusional, o leitor que entende o texto por dentro tão completamente como se tivesse ele mesmo gasto anos a escrevê-lo. E não é que este leitor que devia ser o meu alter ego, habitar-me o imo, apanhar cada motejo privado, cada idiossincrasia, e amá-las como a si próprio, afinal não percebeu nada, tem de voltar a ler, provavelmente tirar notas, enviar-me páginas de perguntas capciosas do género das que se punham a certo romance de Agustina em que a personagem aparentemente morria e adiante renascia?! E tudo isto dava aso a murmurações nas hostes, oh que falta de cuidado, lendas sobre a forma como escreve, como deixa de escrever…

Apanho-me pouco depois a dizer ao colega escritor: “Lê-se muito bem o teu livro. Gostei imenso, não conseguia parar de ler.” Mesmo que não seja verdade, porque lhe digo o mesmo que ele me diria se quisesse ser simpático comigo? Há qualquer coisa na velocidade que é bom e assim é que deve ser. Mas devemos escrever livros rápidos de ler? Stevenson estava convencido de que sim. Aos outros, os que o aborreciam, chamava ele “clerks conversing”. A rapidez implica avidez, mas será possível ter o bolo depois de o ter comido? Que leitura é uma segunda leitura? Tenho sentimentos contraditórios em relação a estes sentimentos contraditórios. Porque o livro quer ser lido depressa, quer ser interessante, não quer ser posto de lado! Mas exactamente porque não quer ser posto de lado, quer ser complexo e profundo, quer ser eternamente lido e relido. Todo o livro anseia ser livro de cabeceira. Pelo máximo de tempo que ele puder. E isto, que parece impossível, é afinal possível e corrente. E vamos deixar a coisa na sua pujança aporética, onde é mais produtiva.

Nos artigos que leio sobre George Meredith mais cedo ou mais tarde aparece a referência à dificuldade e obscuridade da sua escrita. Como se não fosse já fora da linha a acusação de “demasiado escrito”, os comentadores ainda lhe apontam o facto de os seus romances estarem sobrecarregados de “wit”. Então censuram o homem por ter graça a mais? Porque as suas frases são saborosas cornucópias de sentidos e os romances se estendem e se espraiam à son gré, sem outra obrigação formal que não a de se irem espraiando e sendo bons e em partes assim-assim, talvez não muito relevantes, mas sempre impecavelmente estilosas? Atentem no princípio, na forma como indirectamente, em trevelingue, se estabelece o microcosmos em que vive o fidalgo natural e culturalmente egotista, o protagonista de The Egoist, e se fica logo a saber quem manda e quem diz o que se pode dizer e como. Ah, but he has the leg.

Por não ser considerado um escritor fundamental, Meredith é um escritor fenomenal. The Egoist, digam o que disserem, é um mamute de um romance extraordinário, de linguagem elegante e sofisticada e rebuscada analítica que deliciava Oscar Wilde. Porque será que perde com a segunda leitura? É este o ponto, e é bem misterioso.


Conversa de mesa, Forma de Vida nº 17, Revista do Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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