Do campo





Do campo


Embora nós, humanos, estivéssemos confinados, a Natureza seguiu os seus percursos normais

P
assei todo o confinamento no campo. Pela primeira vez, que me lembre, estive mais de dois meses e meio seguidos numa casa fora da cidade, neste caso, no Alentejo costeiro. Nem mesmo durante as saudosas “férias grandes”, em que mudávamos de armas e bagagens para a praia, tive uma tão grande sensação de, por um lado, estar fora e de, por outro, estar dentro. Explico: estar fora daquilo que é o meu habitat natural, a cidade, cosmopolita, diversa, ruidosa, brilhante, rápida; estar dentro desse tal campo que muitos de nós já esquecemos ou, pior ainda, não conhecemos se não de livros ou filmes. O tempo, que aqui correu lento, dá-nos possibilidades de imersão e faz-nos encontrar detalhes que nos passam despercebidos no meio da aceleração persistente que marca a vida de hoje. Daqui deste sítio, foi fácil tornar rotina diária o dirigir o olhar para o “fazer” próprio que aqui acontece e que é, inevitavelmente, ligado à natureza e aos seus ciclos. E nestes meses, embora nós, humanos, estivéssemos confinados, a natureza seguiu os seus percursos normais, de século XXI, com Março e Maio a oscilar entre chuvadas copiosas, granizo e trovoadas e dias de quase quarenta graus, solarengos até mais não. Os afazeres nesta zona seguem esses fluxos e são simples - são os do campo e das suas atividades, sempre sob o domínio do tempo e do tempo.
Form ever follows function” é uma das frases que marca gerações de designers e arquitetos, escrita como tal pela primeira vez pelo arquiteto americano Louis Sullivan em 1896; tal como “less is more”, que resume o dogma que Mies Van Der Rohe e Adolf Loos defenderam no seu movimento modernista, também o é. Ambas encontram um sentido visível e claro nestes sítios onde as atividades ainda se podem fazer com ferramentas cujo design permite consumir um mínimo de materiais na sua produção e cuja função e simplicidade construtiva modelam e definem a sua forma final. São peças onde é fácil identificar o pensamento e a lógica que os criou, onde o propósito para o qual foram produzidos emerge de imediato, sem segundas intenções ou preciosismos. Sempre que fazemos algo assim, onde o respeito pelo material e pela função são a estrutura do pensamento, há uma espécie, única, de beleza inteligente que surge.
Precisaremos nós mais do que isto?
Guta Moura Guedes. Design, in E-Revista Expresso, Semanário #2483, 30 de maio de 2020

Comentários