O Santo António de Agustina




José Tolentino Mendonça




É MAIS COM PERGUNTAS DO QUE COM RESPOSTAS — E ESSA É TAMBÉM A RADICAL EXPRESSÃO DO PODER DA LITERATURA — QUE NASCE UMA DAS NARRATIVAS MAIS ORIGINAIS E INCLASSIFICÁVEIS
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ortugal tem destas excentricidades: que um espírito crítico, torrencial e iluminador como o de Agustina Bessa-Luís se confronte com a nossa mais extraordinária figura de fronteira que é Santo António de Lisboa (ao mesmo tempo medieval e moderno; popular e cultíssimo; português e a cooperar numa mudança epocal que, segundo Jacques Le Goff “vai sacudir a religião, a civilização e a sociedade”), não parece empresa suficiente para ativar paixões. De facto, o seu “Santo António” (agora reeditado pela Relógio D’Água) é, no conjunto da sua obra, um livro injustamente esquecido. O curioso é que a escritora não contorna esta perturbadora excentricidade, antes a toma como explícito ponto de partida. Ela sabe que há duas perceções afirmadas: aquela maioritária que reduz António a “santo fácil e caseiro”, mais para ser festejado do que propriamente compreendido; e aquela marginal, ligada ao estudo da espiritualidade franciscana e ao ambiente universitário, que o perscruta, sim e bem, mas sem chegar a uma síntese amplamente partilhável pelo seu tempo.
A pergunta que Agustina neste impasse se faz é sobre o poder da literatura. E poucas vezes ela o aceitou pensar, diante do leitor, com esta disponibilidade e risco. Que pode a literatura? Que recursos específicos um romancista ativa para iluminar as faces de poliedro de uma personagem que a receção tende a tornar plana? Que inteligência aplica às passagens inexplicáveis, sejam interiores ou de conjuntura histórica, e às mil modulações, desfocagens e diatribes próprias dos processos de transmissão? No fundo, será mais com perguntas do que com respostas — mas essa é também a radical expressão do poder da literatura — que Agustina constrói uma das suas narrativas mais originais e inclassificáveis, que é uma mistura de ensaio e romance, de texto documental e relato de viagem, de filme metafísico e de making-of sobre as condições de produção, de minucioso comentário filológico do passado e de exercício fulgurante e amplo de pensamento sobre a vida.
Quem era Santo António? Um pregador inflamado e discutido, apostado num “processo moralizador” que não poucos teriam recebido como agressivo ou era o difusor entusiasta do ‘sermo humilis’, que procurava alcançar a inteligência de todos?

No Livro XI das “Confissões”, Santo Agostinho argumenta que os tempos são três: “O presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o presente das coisas futuras.” Não admira que a escritora apresente o seu projeto como uma “biografia conduzida pela meditação”. Recorde-se que a mesma etimologia latina acomuna a palavra meditação e termos como medicina ou medicamento. Meditar é, por isso, curar o presente.
Quem era efetivamente Santo António? Era um pregador inflamado e discutido, apostado num “processo moralizador” que não poucos teriam recebido como agressivo ou era, ao contrário, o difusor entusiasta do sermo humilis, que procurava alcançar a inteligência de todos, doutos e não doutos? Que transformação aconteceu para que Santo António tenha chegado até nós, sobretudo sob a forma do afeto ao nível do rito quotidiano e das suas mediações, como “piedoso confidente de razões práticas”? E essa transformação foi o fruto de uma crescente maturação psicológica que se explica ou uma experiência mística que é da ordem do indizível? Mesmo defendendo que “António é um afetivo e não um místico”, consumando-se mais na compaixão do que no puro abandono do arrebatamento, Agustina ajuda-nos a mergulhar na fascinante complexidade do santo que, segundo ela, vivia “a condição metafísica dessa treva em que o conhecimento dos seres não é mais um pacto vital, mas um enigma que se respeita pela sua analogia, ou aptidão para receber o divino”.
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens. E-Revista Expresso, #2486, 20 de junho de 2020

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