Férias





Ilhas Eólicas, Itália. 




AQUILO QUE NOS PERMITE RELANÇAR A VIDA SÃO COISAS PEQUENAS QUE PRECISAMOS DE REAPRENDER
N
o seu filme “Caro Diário”, Nanni Moretti acaba (quase!) por fugir a nado das ilhas eólias. Os que viram o filme recordar-se-ão que ele partira para essa “peregrinação interior” projetando aí uma espécie de grande e necessário reencontro com a vida, na sua pulsão mais verdadeira, essencial e longínqua. Esperava desse reencontro o que muitas vezes desejamos nós das férias: que nos renovem, que libertem o nosso olhar blindado e alterem o nosso intermitente humor, que nos tragam paisagens diversas, que nos reconciliem... E contava com o influxo positivo das eólias para isso, como nós contamos com o que está ao nosso alcance: uma casa, um lugar que visitamos, um livro, uma montanha, um toldo arejado ao pé do mar... Mas, no filme de Moretti, as ilhas do tirreno revelam-se rapidamente um mal-entendido, igual ao de todos esses massificados paraísos de estampa em que a propaganda estival é fértil, e que servem apenas para ampliar o vazio, pois, mais uma vez, roubam à vida o seu prometido verão. Quando ele constata que o que ali vigora é o mesmo omnipresente formato consumista, porventura num registo ainda mais feérico, lança-se abruptamente para o barco de regresso, confessando, com desalentada ironia: “Sou feliz só no mar, na travessia entre uma ilha que acabei de deixar e de uma outra que devo ainda conhecer.”

Bem, a dizer a verdade, a finalidade deste introito não é o cancelamento das férias, que constituem uma variação do tempo tão propícia e necessária. Pelo contrário, pretende bramar que é possível encontrar saída. Se repararmos, no filme “Caro Diário”, mesmo um escrutínio escovado severamente como o de Nanni Moretti, encontra, por exemplo, numa das ilhas — a bela ilha de Salina — dois clarões preciosos que, depois do filme terminar, continuam a luzir na nossa cabeça. Trata-se de duas breves cenas, desenhadas na sua aparente simplicidade como pontos de fuga em relação ao confronto desiludido e áspero com o real, mas que insinuam uma efetiva possibilidade de sentido, o tracejado de um caminho.
Em Salina, um dos lugares que quis muito visitar foi o farol. “Mas é anódino, não tem nada de especial” — explicaram-me. Porém, eu sabia que não era assim
A primeira delas é uma cena de corte: para romper com o circuito fechado da interminável comunicação palavrosa, a personagem interpretada pelo cineasta Nanni Moretti afasta-se do aldeamento até à zona do farol, e caminha em silêncio. Apenas isso. Caminha não com o fito utilitário de chegar a algum lado. Podemos dizer que se recolhe, que, naquele passeio solitário pelo espaço, reencontra o seu silêncio, que aplaca a sua respiração, como se lhe fosse oferecida a possibilidade de caminhar não apenas por aquele baldio, mas sobretudo dentro de si. Dois elementos plásticos enquadram essa deambulação, e que talvez não nos sejam mostrados por acaso: os destroços de um barco em terra e um navio que desliza pela costa. Isto é: como se passa da existência como naufrágio à reativação esperançosa da própria viagem.
A segunda cena conta um facto ainda mais simples. A personagem volta à zona do farol, que tem um minúsculo lago (na origem existia ai uma salina) e um campo de futebol de terra batida. Perto da baliza está uma bola. E Moretti que se aproxima de cabeça baixa, absorto na redação do diário, de repente vê a bola. E corre. E começa a jogar. A bola sobe, toca na terra, ele chuta-a de novo, correndo de um sítio para outro, numa coreografia, de repente, ligeira, numa ligeireza, de repente, possível. Creio que a lição do filme “Caro Diário” é essa: que aquilo que nos permite relançar a vida são coisas pequenas que precisamos de reaprender.
Lembro-me que quando visitei Salina, um dos lugares que quis muito visitar foi este farol. “Mas é anódino, não tem nada de especial” — explicaram-me. Porém, eu sabia que não era assim.
José Tolentino Mendonça, Que coisa são as nuvens, E-Revista Expresso, Semanário #2491, 25 de julho de 2020

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