+ Leituras | As cigarras: mote e glosas









PARA OUVIR TEMOS DE ARRISCAR ABRIR A JANELA, PRATICANDO UMA HOSPITALIDADE PARA COM A VIDA QUE NOS SURPREENDE COM NOVOS VOZEIOS
Em Portugal, que eu saiba, o melhor lugar para ouvir as cigarras é a poesia de Eugénio de Andrade. Ao menos para mim representou o sítio onde verdadeiramente as escutei pela primeira vez. Mas nesta época em qualquer recanto, por onde quer que se vá, elas tornam audível o verão. Basta um jardim, um matagal humilde, um esconso ao aberto, um atalho mesmo que urbano, umas traseiras, um metro quadrado de calor e silêncio. Ou basta simplesmente um ouvido disponível. Coisa que depois, percebemos, não é afinal tão simples.
Já Alberto Caeiro recordava: “Não basta abrir a janela/ Para ver os campos e o rio./ Não é bastante não ser cego/ Para ver as árvores e as flores./ É preciso também não ter filosofia nenhuma./ Com filosofia não há árvores: há ideias apenas./ Há só cada um de nós, como uma cave./ Há só uma janela fechada...” Ideias, caves e janelas fechadas são um arsenal mais comum do que pensamos. E é fácil deslocarmo-nos para um sítio distante do nosso mundo habitual, chegarmos a uma estação diferente e continuar aprisionados às mesmas visões ou dentro do mesmo campo acústico. Para ouvir temos, de facto, de arriscar abrir a janela, praticando uma hospitalidade para com a vida que nos surpreende com novos vozeios, nos obriga a contactar com múltiplas linguagens e a acolher outras formas de conhecimento. O verão, por exemplo, como se conhece? Num dos seus poemas, Eugénio escreve: “Conhecias o verão pelo cheiro,/ o silêncio antiquíssimo/ do muro, o furor das cigarras”. O verão tem cheiros, tem cores, come-se à mesa, espera que o escutemos. Na verdade, o mundo torna-se para nós cada vez mais desconhecido se apenas giramos com a nossa portátil filosofia e deixamos de aplicar à realidade os nossos sentidos, indispensáveis para construir aquilo que significa uma experiência.
Os monges serão chamados cigarras, pois a sua vida contemplativa não procura outra função que o louvor

O fascínio pelas cigarras tem raízes antigas. Em “Fedro”, de Platão, cabe a Sócrates recuperar o seu mito de origem, explicando que elas, antes de terem sido cigarras, eram homens, com uma existência em tudo igual à nossa. E que isso vigorou até ao nascimento das musas. Depois aconteceu que o obsidiante canto das musas provocou neles tal transtorno que aqueles homens não voltaram a comer ou a beber, acabando por se transformar naquilo que escutavam. Nem o estômago vazio nem a secura da garganta interromperam mais neles a dedicação à arte de cantar.
É verdade que a fábula da cigarra e da formiga arrasa com o prestígio das cigarras. Enquanto a primeira canta despreocupada, a incansável formiga acumula provisões. Quando avança o inverno, a cigarra desprovida bate à porta da formiga a mendigar um pouco de grão, mas nada obtém. Pobre cigarra que tem então de compreender, através da penúria, o preço de viver só a cantar. A fábula narra obviamente o triunfo de uma visão utilitarista do mundo, que rapidamente se disseminou por todas as dimensões da vida. O século XVII de La Fontaine afastou-se (e afastou-nos) daquela sabedoria que o medieval Francisco de Assis recomendava aos seus frades. Francisco pedia que reservassem na horta um espaço livre, não cultivado, para que pudessem brotar flores, e, desse modo, o zelo pelo útil não excluísse o perfume que lhe acrescenta o inútil. São Francisco de Assis não podia, por isso, criticar as cigarras. Pelo contrário dizia-lhes: “Vem cá, minha irmã cigarra... canta minha irmã cigarra o Deus que te criou.” A tradição monástica vai pegar nesta imagem e os monges serão chamados cigarras, pois a sua vida contemplativa não procura outra função que o louvor. Ensinam-nos tanto as cigarras. Boa escuta.
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens, E-Revista Expresso, edição 2488, 4 de julho de 2020
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A fábula de la Fontaine - o mote





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A cigarra e a formiga – La Fontaine na versão de Bocage

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o Verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brilho,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso Estio.

«Amiga, diz a cigarra,
Prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes d’Agosto
Os juros e o principal.»

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
«No Verão em que lidavas?»
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: «Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.»
«Oh! bravo!», torna a formiga.
– Cantavas? Pois dança agora!»

“LIÇÃO DE VIDA: Os que não pensam no dia de amanhã, pagam sempre um alto preço por sua imprevidência.”

– La Fontaine em “Fábulas de La Fontaine”. [tradução Bocage, Rio de Janeiro: Editora Brasil- América, 1985
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A cigarra e a formiga – La Fontaine lido por Miguel Torga

Era uma vez
uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E, realmente…
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

Miguel Torga
Diário VIII,1956

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As fábulas da fábula - 2 Glosas de Miguel Torga


Grilo, Inseto, Gafanhoto, Pragas, Natureza

Aos poetas

Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!

Miguel Torga


Edu Cezimbra: A Cigarra e a Formiga Pós-modernas
Cega-Rega (conto de Bichos)


É difícil. Isto de começar num monturo [1], e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme [2] calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável [3]. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois… Ah, depois é essa descida ao húmus [4], essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja…

É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.

– Já hoje ouvi a cigarra…

– É tempo dela.

Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa… Quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anódina [5] e conseguida ascensão. E cantava.

A primavera estava no fim e o estio[6] ia começar. As cerejas pontuavam a veiga [7] de sorrisos vermelhos. As searas [8], gradas [9] de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.

Ainda no rés-do-chão [10] das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.

– Até azamboa [11] a gente!

O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar [12] de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar. Com que razão? Porquê?

Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem!

Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.

– Muita alegria tem tal bicho!

– A alegria passa-lhe… É deixar vir o inverno…

A pressurosa [13] formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!

– E temo-lo aí, não tarda muito.

Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos [14]. Que nas tulhas [15] se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.

– Mas em quê? – perguntava um pardal suspicaz [16].

Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.

– Chega-lhe, Cega-Rega!

O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!… Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.

A morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro…


Miguel Torga


[1] monte de matéria orgânica, esterqueira; [2] difícil de subir, trabalhoso; [3] impiedosa, rigorosa; [4] solo composto por matéria orgânica vegetal; [5] que acalma a dor; [6] verão; [7] terra cultivada; [8] campo semeado; [9] bem desenvolvidas; [10] andar térreo; [11] deixa tonta, atordoa; [12] trabalhar muito, como um “mouro”; [13] ativa, impaciente; [14] prisioneiros condenados a remar numa galé, uma embarcação; [15] lugar onde se armazenam grãos; [16] que desconfia


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A cigarra e a formiga, glosa de Monteiro Lobato
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.
Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.
A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro.
Bateu – tique, tique, tique…
Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
– Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu…
A formiga olhou-a de alto a baixo.
– E o que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse.
– Eu cantava, bem sabe…
– Ah! … exclamou a formiga recordando-se. Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
– Isso mesmo, era eu…
– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho.
Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.
“MORAL DA HISTÓRIA: Moral da História: Os artistas: poetas, pintores, músicos, são as cigarras da humanidade.”
– Monteiro Lobato, em “Fábulas”. São Paulo: Brasiliense, 1995.

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