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VITORINO NEMÉSIO — À LUZ DO VERBO
José Martins Garcia
Companhia das Ilhas, 2020, 268 págs.
Ensaio



A
Companhia das Ilhas tem estado a reeditar a obra do ficcionista, poeta e crítico José Martins Garcia (1941-2002) e também, em parceria com a Imprensa Nacional, as obras completas de Vitorino Nemésio. De modo que este estudo, “Vitorino Nemésio — À Luz do Verbo” (1988), liga naturalmente os dois projectos. A familiaridade de Martins Garcia com a obra nemesiana é patente, em termos ilhéus, biográficos, estilísticos, linguísticos e até de conhecimento pessoal (o livro inclui várias citações de umas muito esclarecedoras “notas autobiográficas” redigidas por Nemésio). Mais de que os factos, aliás perfeitamente resumidos, o desenvolto ensaísta procura os temas fortes, as sensações persistentes: o paraíso perdido da infância, a nostalgia da ilha, a frustração amorosa, a interioridade metafísica, a “incapacidade de combater o mundo”.

A ficção de Nemésio, quase toda “regionalista”, pode ser vista como um esboço de “Mau Tempo no Canal” (1944), livro tão difícil de superar que o autor abandona a ficção, excepto, de algum modo, nas crónicas e outras “viagens ao pé da porta”. Da protagonista, Margarida Clark Dulmo, menina bem nascida da Horta, fez Nemésio o epicentro de um romance “objectivo” sobre aristocratas, burgueses e arraia-miúda das ilhas do Grupo Central, mas também de um romance de subjectividades míticas, decadentes, insatisfeitas. É por isso que Margarida descende do capitão flamengo Fernão Dulmo, descobridor de uma ilha ao norte da Terceira que talvez nunca tenha existido; é por isso que ela sobe à Ponta do Pico, “lugar mítico de onde se avistam [imaginariamente] as nove ilhas do arquipélago”. A objectividade do romance, os coloquialismos e foneticismos, os arcaísmos vivos, as descrições de paisagens ou de costumes mal se distinguem dos grandes arquétipos e das grandes subjectividades contrariadas. Ou da ideia de que “o amor de um mito é puro mito”.
O mesmo vale, mutatis mutandis, para a poesia, que, depois da juvenília, se inicia com um livro em francês, como se o autor reivindicasse uma identidade pessoalíssima, estrangeirada, europeia. De “O Bicho Harmonioso” (1938) a “Limite da Idade” (1972) encontramos em toda esta obra poética, sem necessidade de heterónimos, muitos Nemésios e um mesmo Nemésio: um poeta grave, ascético, intimista, angustiado, e um poeta festivo, lúdico, exuberante, curioso. Um mestre do verbo e da enunciação, elíptico, intenso, fechado em si e aberto ao mundo.
Pedro Mexia. E-Revista Expresso. Semanário #2491, 25 de julho de 2020.

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