As botas de Mussolini | Crónica de Gonçalo M. Tavares

 

1.

Pediu pontaria para um ponto do peito,
não estraguem o meu perfil, terá dito Mussolini.
O rosto, a parte do corpo que, no último instante, reclama por protecção e abrigo.

2.

Mario Bertulli, sapateiro, artesão para pés,
os dois apoios constantes no mundo.
Não valorizemos apenas a cabeça.
No século XXI faz à mão, com arte, cunhas subtis
que põem mais alto o que é mais baixo.
Filho de Domenico Bertulli, sapateiro também.
Mario, filho, conta que Domenico, pai, fez as botas
que o “Duce” calçava no dia em que foi executado.

3.

As botas do humano pendurado sobem de altura e
ganham no horizonte um perverso protagonismo.

4.

1,66 metros de estatura, 41 de calçado, ele.
Ela, Claretta Petacci, poderia ter fugido no último momento,
mas quis ficar ao lado do companheiro até ao fim.
Nem todos os gestos nobres são distribuídos pelos nobres.
E o mundo moral não está organizado com a clara exactidão desejada.

5.

Terrível imagem da terrível história: Mussolini e
companheira, Claretta Petacci, de cabeça para baixo,
pendurados num posto de gasolina, como bandeira mórbida
hasteada para balançar sobre o novo ar da Europa,
29 de Abril de 1945.
No dia anterior haviam sido mortos; mas a morte nesse dia não basta,
necessário é mostrar aos novos vivos o morto principal.

Bandeiras assim enchem de combustível o ar
que existe entre uma década e outra, um século
e o seguinte. Difícil ver no grotesco um ponto final.
O ar entre séculos move-se com motor mudo mas boa memória.

Mas de Antonio se poderia também falar. Um miúdo
da Resistência que ficou com as últimas botas
de Mussolini e as guardou até hoje numa modesta gaveta
de uma pequena província italiana.

Que fazem quietas há muito as últimas botas
de Mussolini; que esperam elas e planeiam
e em que novos pés vão assentar sem magoar atrás, de lado ou à frente?

O que acontece no movimento dos astros e da História
quando o fim no último momento ainda atira para a frente
objectos e ideias e os esconde em gavetas
com a potência de um vulcão paciente
que para todo o sempre parece calado e quieto,
mas não, não está, não fica e não ficará.

NEM TODOS OS GESTOS NOBRES SÃO DISTRIBUÍDOS PELOS NOBRES. E O MUNDO MORAL NÃO ESTÁ ORGANIZADO COM A CLARA EXACTIDÃO DESEJADA

6.

Mussolini parece ter ficado ali, no poste, pendurado.
Mas a fotografia fixa apenas a forma exterior de um facto,
não é uma máquina de entender mas apenas de mostrar.
Não pode balançar suspenso um corpo para sempre,
é da lei das coisas sólidas;
o som que faz um corpo quando cai depende da altura e do seu peso
mas também da sua narrativa.
A História faz um certo som quando vem do alto e bate de chapa contra o chão.

Em 2020, aqui e ali, a terra aquece um pouco,
e certos sons vindos do fundo são para ouvido lúcido
um modesto anunciar de uma nova turbulência antiga.

O bom estudo da boa História em parte é isto:
uma forma de treinar o ouvido e também os olhos
para os acontecimentos vistos ou relatados
na casa ao lado ou no telejornal das oito;
há um segundo som debaixo do som de cada coisa
e é esse segundo som, sem dúvida, o som verdadeiro.

E sim, como água um instante antes de ferver
as botas de Mussolini emitem som e ansiedade.
Não estão mudas e não estão quietas.

Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Gonçalo M. Tavares. Os cadernos e os dias - História fragmentada do mundo. E-Revista Expresso. Semanário #2495, de 22 de agosto de 2020


Comentários