Crianças feitas para grandes férias

 


A VIDA ESTÁ CHEIA DE COISAS A QUE NÃO DEDICAMOS O TEMPO SUFICIENTE. ESTE TEMPO É UMA OPORTUNIDADE PRECIOSA

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tempo de férias não é simplesmente uma sazonal deslocação de lugar. Quando escutado em profundidade, percebemos que se trata de um tempo de procura que o nosso coração reclama, pois este precisa da coreografia de outros caminhos, da respiração de outros espaços e encontros, precisa do aberto da vastidão. Não somos feitos para a vida condicionada, blindada nos seus automatismos, perdida nas voltas quebradas do seu labirinto. Como ensina o poema de T. S. Eliot, se “a colheres de café andamos medindo a vida” é só porque nos falta a coragem de reconhecer perante nós próprios: “Não é isto, nada disto,/ Não era nada disto que eu queria dizer.” De facto, outro poeta, Ruy Belo, deixou escrito: “Somos crianças feitas para grandes férias”. E tinha razão. Mesmo quando parece que nos resta apenas uma vida sonâmbula, ferreamente ofegante, dispersa por mil pequenas tarefas, capturada por mil pequenas urgências que se impõem e a que exasperadamente buscamos dar resposta. Mesmo quando nos parece que o horizonte se torna sempre mais precário e sucinto, e que não podemos alimentar acerca disso grandes ilusões. Mesmo quando se julga que a vida se afunila numa cordilheira para lá das nossas possibilidades de controle. A verdade é que o nosso coração não deixa de nos recordar que precisa do convívio com coisas incomparáveis, pois para isso foi criado. 
Não somos feitos para a vida condicionada, blindada nos seus automatismos, perdida nas voltas quebradas do seu labirinto

 
Desse modo, precisamos de subir aos montes, de ir assobiando pelos atalhos da manhã para olhar as marés, de ficar ocupados a contemplar apenas, e de permanecer aí algum tempo. Precisamos do confronto com o silêncio que o vento arrasta lentamente pelas esplanadas da tarde, um silêncio confidente e restaurador que nos cura da passagem abrasiva de tantas inúteis palavras. Precisamos dessas conversas que não são o habitual amontoado de frases entrecortadas e de desejos interrompidos, mas por fim se prolongam harmoniosamente, capazes de uma expressão inteira, transparente e uníssona. Precisamos de ver como quem realmente vê; de aspirar o real na sua profusão, na sua natureza recôndita, em seus detalhes; de tatear a pele lisa e rugosa da realidade; de escutar o seu acontecer maiúsculo e minúsculo; de saborear o espetáculo da vida sabendo que a fome vale tanto como o pão e a sede nos dessedenta como a água. A existência, até ao fim, outra coisa não é que gestação. Onde existirem dores de parto existe a vida, uma vez que para seres inacabados como nós o nascimento é coisa interminável.

O tempo de férias é assim, a tantos títulos, uma oportunidade preciosa. A vida está cheia de coisas a que não dedicamos o tempo suficiente. Não raro, é esse o peso maior que transportamos pelas estações fora: o que podíamos ter escutado a dada altura e não o fizemos, o que nos esteve a ser revelado e cujo sentido não colhemos, como se o segredo da existência tivesse sido repetido para nós em vão. Não estávamos aí, estávamos longe, sem raiz em nós próprios, prisioneiros da distração, entre tantas incapacidades... E a semente desse instante perdeu-se sem frutificar.

Não nos deixemos paralisar pela lógica do consumo que atordoa com os seus fogos fátuos, e sobretudo não nos permite mergulhar na vida interior. Há uma parábola que, no aqui e no agora, está a ser contada, e essa diz respeito àquilo que estamos a fazer da própria vida: de que é que estamos a viver?; como é que abraçamos a vida?; esse abraço é puro ou esquivo, sereno e dilacerado?; com que intensidade o fluir da vida nos atravessa?; e sentimos que a vida se dissipa ou se multiplica?


José Tolentino Mendonça. Crianças feitas para grandes férias. E-Revista Expresso, Semanário #2493, 8 de agosto 2020

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