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LIVRO DE VOZES E SOMBRAS
João de Melo
D. Quixote, 2020
384 págs.
Romance


É um livro em que o tempo se sobrepõe às vozes e às sombras que evoca. Projeta-se em cinco trilhos temporais paralelos e quatro trechos espaciais interpolados; os limites são traçados por personagens e pelos contextos históricos que as condicionam. E se os trilhos correspondem a quatro percursos simultâneos (da jornalista Cláudia Loureiro, do ex-operacional da FLA Mariano Franco, do sindicalista açoriano Manuel Cristóvão e da “retornada” Ângela Mendes Pinto), a quinta linha da pauta acomoda a recomposição desta escala musical feita romance. Nos quatro espaços, assumem-se imageticamente três polos (Açores, África Colonial e Lisboa/Metrópole), todos remetendo para o último espaço da insularidade, replicada em dois movimentos de independência de sentidos opostos cujo contrapeso é um desconjuntado país a medir forças. Como num pentagrama, o conjunto desenha o tempo no espaço: Cláudia quer uma entrevista exclusiva do homem da FLA, mas este apenas quer branquear o seu papel na História. Ângela, a menina-mulher ‘despejada’ em Lisboa, partilha com Cláudia a idade, são a “geração seguinte” que apanhou o comboio em andamento. Mas as voltas do destino enredam-na na vida de um sindicalista açoriano, e assim se dá a confluência dos Açores com África num microcosmo chamado Campo de Ourique. 

O romance organiza-se em seis “sequências” e esparge-se numa espécie de epílogo — que, não por acaso, se intitula “Finisterra”. João de Melo sempre teve um dom, demasiadas vezes mal compreendido: as suas descrições acionam a fluidez de uma melodia. Modo de ‘ver-sem-olhar’, tendo seu expoente máximo em Ângela, permite detetar variáveis da mesma cegueira nos restantes; e também nós, tateando e ouvindo, lemos o cheiro do medo e do sangue; sabe-nos a desengano e a frustração cada uma das notas deste solfejo. São vestígios do passado em sussurros do presente.

Luísa Mellid-Franco. E-Revista Expresso. Semanário #2494, 15 de agosto de 2020

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