+Leitur@s | A menina dos olhos ocupados

 



Surgiu-lhe num sonho, como quem não quer a coisa. É a primeira vez que o cartoonista André Carrilho ilustra e escreve um livro infantil. A personagem é a filha, mas é também cada um de nós

TEXTO LUCIANA LEIDERFARB

O

seu catálogo conta já com vários livros publicados, com centenas de cartoons, caricaturas e ilustrações, até para crianças, publicadas em várias partes do mundo. Mas André Carrilho nunca antes tinha experimentado escrever e ilustrar um livro de raiz. O que determinou que se lançasse nesse empreendimento? “Aconteceu-me ser pai”, diz ao Expresso, como se dessa primeira vez o livro se tivesse desprendido, soltado, como uma folha intrépida a cair do caule.

Aconteceu-lhe ser pai e, com isso, vieram as perguntas e a imaginação de futuras conversas. “O livro foi feito para me dar a oportunidade de desenhar coisas que gostaria de mostrar à minha filha”, comenta, “é um diálogo que um dia os dois iremos ter”. Chamou-se “A Menina com os Olhos Ocupados” porque à menina que atravessa as páginas, pequena e franzina, o mundo passa-lhe ao lado. Cães perseguem-na, elefantes molham-na com a tromba, uma girafa estende-lhe o pescoço, mas nem sequer um bando de piratas sujos consegue inquietá-la, a ela que “continua a andar, mas parece que dorme”. Extraterrestres, ursos de abraço aberto, um circo enlouquecido ou o mesmíssimo espaço aparecem-lhe à frente, mas é como se não os visse, os olhos como que estão cativos num ecrã.

As rimas sucedem-se, tratando um tema bem atual: “Uma das questões que me preocupa bastante é a utilização de tecnologias — como a nossa atenção é dispersa e monopolizada. As crianças precisam de ter uma relação tátil, física com o mundo. Há muitos pais que querem ter esta conversa com os filhos e não sabem como”, refere André Carrilho. A formação de cartoonista permitiu-lhe encontrar a via ideal para iniciá-la, mas o que lhe deu o impulso, o que o levou a encontrar as palavras certas foi um sonho. “Sonhei com versos, assim comecei a escrever o livro. Desta vez não foi pelo desenho. Há associações de ideias que tenho mesmo de escrever. A escrita é uma forma de organizar o pensamento, e consigo ser mais espontâneo do que a desenhar — que exige mais planificação.”

Neste caso, essa espontaneidade ‘contagiou’ o traço, que surge feito em aguarela, material reencontrado durante as viagens feitas em família. Pintar os lugares “é o mais próximo que existe da meditação” e acaba por ‘infetar’ (os termos médicos são seus) a profissão. “A aguarela não se consegue replicar digitalmente, é domar o caos da água”, reflete. E a consciência dessa indomabilidade fê-lo desenvolver o método com que abordou este livro: “É muito difícil fazer um primeiro livro que fique bom. Então, conscientemente, peguei em três ou quatro ilustrações e repeti-as exaustivamente até ficarem aceitáveis.” Assim venceu a incerteza da aguarela.

E-Revista Expresso, Semanário #2491, de 25 de julho 2020

A MENINA COM OS OLHOS OCUPADOS

André Carrilho

Bertrand, 2020

48 págs.

Livro ilustrado


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