Quatro razões para ler Esquirol





A PROVA MAIS DURA PARA A NOSSA CONDIÇÃO HUMANA É ESTA INVISÍVEL DESAGREGAÇÃO DO SER, ACEITE COMO REGIME DE NORMALIDADE

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m livro de filosofia pode ser um excelente livro para o verão? Acaba de ser editado em português uma das obras mais importantes do filósofo catalão Josep Maria Esquirol. Intitula-se “A Resistência Íntima. Ensaio de Uma Filosofia da Proximidade” (Edições 70, 2020). Há quatro razões que a tornam leitura obrigatória.

A primeira razão é o problema que Esquirol escolhe enfrentar: a denúncia do primado atual do niilismo. Isto é, o autor não se fica por comentar as consequências múltiplas que podemos identificar num presente cuja inconsistência — como aquele cão-inspetor que Goya colocou numa das suas Pinturas negras — rapidamente farejamos. Como hoje se diria, o niilismo tornou-se viral. Esquirol ilumina a sua lógica enquanto processo histórico, que primeiro promove o desmantelamento sistemático de tudo o que poderia constituir um horizonte de sentido e depois nos abandona às arenas do vazio, onde a angústia prospera. A prova mais dura para a nossa condição humana é esta invisível desagregação do ser, aceite como regime de normalidade; esta experiência avulsa de expropriação de si traduzida em tantas modalidades de exílio, face às quais nos tornamos conformistas e acríticos; estes magros recursos de que aceitamos dispor para atravessar a vida.

Este é um livro de instruções para praticar uma resistência ativa ao niilismo. A razão seguinte está, assim, declarada. Por séculos e séculos, o verbo viver foi sinónimo de sobreviver, porque a grande incumbência que nos estava atribuída era a luta para salvaguardar as condições materiais da existência. Ora, nas sociedades do bem-estar, quando a sobrevivência é considerada garantida, abre-se uma outra frente, não menos exigente: a da luta contra a desagregação, a indiferença e a inautenticidade. Em formulação negativa, a resistência pode ser descrita como uma não-cedência perante as ameaças desagregadoras, tenham elas o nome que tiverem: dogmatismo, ditadura da atualidade, patologização e medicalização da vida, redução do mundo a um conjunto de dados informativos, logorreia, indiferença, deterioração da linguagem. Mas o movimento de resistência não é apenas reativo: ele abre espaços de liberdade, de pensamento e de criação. E o seu poder provém de aprofundar a difícil arte da esperança, elaborada num horizonte que não é simplesmente individual. A esperança não é uma variante da imunologia. Não se trata de pensar apenas a organização de si, mas de ligar-nos ao nosso elemento primordial, a comunidade do nós. 

Por séculos e séculos, o verbo viver foi sinónimo de sobreviver, porque a grande incumbência que nos estava atribuída era a luta para salvaguardar as condições materiais da existência

A terceira razão tem exatamente a ver com isto e representa o nó axial desta obra: o conceito de proximidade. E o filósofo esclarece o leitor sobre o equívoco que seria interpretar resistência íntima como resistência interior. Na verdade, íntima deve entender-se aqui como próxima e nuclear. Proximidade em relação a si mesmo e em relação ao outro. Além disso, uma filosofia da proximidade, como ele a entende, não pode ficar refém da abstração avulsa ou entender-se como uma operação de distanciamento face ao real mais tangível. Pelo contrário, deve avizinhar-nos da casa, deve ajudar-nos a reabilitar a quotidianidade, a pensar as junturas do visível, a reinterpretar o adjacente, o contíguo, o confinante.

A quarta razão prende-se com os dias que vivemos. A situação de emergência global trouxe à ribalta discursos diferenciados sobre como se resiste às situações de catástrofe, a esta presente e às anunciadas. Temos de estar melhor preparados — parece ser uma das lições unânimes a colher. Penso que uma forma de preparação decisiva, no nosso mundo incerto, é aquela que nos chega através da capacidade de pensar.

José Tolentino Mendonça. Quatro razões para ler Esquirol. E-Revista Expresso, Semanário Expresso #2494, 15 de agosto de 2020


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