Ensaio | Sobre a leitura

 

Young Man Reading (1892), de Octavian Smigelschi (Roménia, 1866-1912); óleo sobre tela, 65×75 cm; Museu Nacional Brukental



A convivência com os livros, nomeadamente os clássicos e os seus epígonos contemporâneos, seja qual for o género literário (poético, narrativo, ensaístico, filosófico, científico…), é o princípio do conhecimento e da compreensão dos fenómenos existenciais. O amor aos livros e ao acto de leitura conduz a amar a realidade vivida; a compreender amando e a amar compreendendo aquilo que nos envolve e faz desejar ser algo novo. Podemos olhar para a leitura como um acto temporal, corporal, descentrado e terapêutico. Todavia, haverá ainda hoje razões para ler?

A leitura é uma ignição poderosa para despertar o imaginário, solidificar pensamentos, suprimir a fadiga. Segundo Proust, “a nossa sabedoria começa onde a do autor acaba, e queríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos”[1]. Esta é a experiência oblativa do desejo de um escritor que é também um leitor inveterado, no sentido sartriano, segundo o qual “todas as obras do espírito contêm em si mesmas a imagem do leitor a quem se destinam.”[2]

Mais do que respostas, ou anseio de criar “algo novo”, o escritor paciente dá-nos desejos, desejo de questionamento, de ir mais além na imaginação real e diversa das mesmas coisas. Depois de uma leitura bem-feita, silenciosa ou pública, atenciosa e cintilante, passamos a ler o mundo através do lido. Há aqui um prodigioso encontro de alteridades inesperadas. Na leitura perdemo-nos para nos reencontrarmos no pensar de outrem.

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Neste tempo de privatização do corpo, e ao mesmo tempo da sua exposição solitária no digital ou virtual (corpo virtual), é ainda possível reabilitar a nossa “presença real” no espaço infinito da leitura, como tempo de comunhão comunitária, sem rumores, para o silêncio da palavra que nos interpela? Ler em companhia do outro, ou ler no plural, amplia a nossa própria visão para imaginar as coisas de um modo novo e diverso, a entrar na conversação de qualidade com os outros. Quando lemos um livro, e o partilhamos, praticamos a hospitalidade concreta dos outros.


João Paulo Costa. Do prazer da leitura como exercício espiritual – as comunidades de leitores como um outro modo de ser crente? (excertos do ensaio). 7 Margens, 21 de agosto 2020

[1] Marcel Proust, Sobre a leitura, Nova Vega, Lisboa 2019, p. 44.
[2] Jean-Paul Sartre, Qu’est-ce que la littérature?, Gallimard, Paris 1985, p. 92.


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