Crónica | Aurélia de Sousa, de Mário Cláudio

 

Aurélia de Sousa – Autorretrato, 1882, Museu Nacional de Soares dos Reis



Alfobres de tísicos e japoneiras, as quintas barrocas do estuário do Douro, quando não convertidas em hospícios e cooperativas, ou arrasadas para dar espaço a condomínios fechados, fariam de nós uma geração de nostálgicos. Não fugiria à regra a chamada “da China”, assombrada por uma pintora delgadinha, e mais bambu do que junco, cujos pulmões pagavam tributo às manhãs esponjosas em que a bruma ocultava uma margem da outra. Daí que a permanente fadiga que a afligia se somasse à dor de, sempre que revisitava alguma das suas telas antigas, se aperceber de que uma fosca velatura aderira entretanto aos pigmentos.

As tintas levavam longo tempo a secar, e enquanto ela as vigiava, desempenhando função paralela à da irmã que lhe tirava a temperatura, Aurélia recapitulava as viagens que empreendera na demanda de si mesma, e do seu ofício. Liquidados os anos de Paris, vagabundeara por Londres e Roma, por Veneza e Amsterdão, constantemente só, sujeitando-se a que a Cidade lhe inventasse infâmias, e estimulando as amigas a atribuir-lhe heroísmos. Levada pela urgência de se masculinizar, vira-se como um santo mendicante, e afivelara sucessivas máscaras, até se confundir com um cavaleiro geométrico, e porventura o seu tanto feminino, restrito ao casaco vermelho de excêntrico indiferente à vox populi.

Mas bastava uma tarde de chuviscos, demorando-se pela “Quinta da China”, para que a identidade se lhe esvaísse, dupla do revenant que aparecia no salão, manifestando-se pela mais luminosa das brancuras, e evaporando-se sem rasto, nem sequer o do aroma das violetas. Retornava à quietude, pairando entre um ele e uma ela, criatura que poderia revelar-se implacável como um guarda prisional, ou exata como um ministro das finanças, de alfinete redondo que lembrava um pingo de lacre, a marcar-lhe a obsessão do asseio. Assim anularia os seus medos maiores, o de se extraviar num labirinto imaginário, o de se esgotar nos arranjos de costura, e o de se vulgarizar nas rosas a óleo que lhe encomendavam.

Quando o Douro crescia lá ao fundo, transbordando para os campos, e arrastando troncos de salgueiro, cabeceiras de cama, e vestidos de noiva em farrapos, o sono abatia-se sobre ela após um acesso de tosse. Vogava-lhe na memória o nevoeiro do Tamisa, o fauno de mármore da villa romana, o chape-chape da água do Gran Canale, ou a folhagem que cobria o pátio holandês.

Escondia o rosto entre os braços, adormecia no tampo da mesa, e o cromatismo de um remoto Verão recusava-se a fixar-se numa paisagem esquecida.

Mário Cláudio. Expresso, 23 de setembro de 2020

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