Crónica | Dona Joana de Eça, de Mário Cláudio



Autor desconhecido – "Dona Joana de Eça" (?), c. 1550-1560
Museu Nacional de Arte Antiga




“Tecida de minudências, a raça perde-se, mas recupera-se, a cada volta do caminho.” Digo-lhes isto, ou algo assim, quer por carta, quer por voz, e respeitam-me a opinião. Há muitos anos, ainda ontem, pouco eu curava de matérias domésticas. Elevada ao meu estatuto, porfio em proclamar sabenças superiores ao usual, mas não incompatíveis com ele. Acalentei o crescimento da fama de doceira do bolo podre que nunca provo, nem consinto em que o façam diante de mim. No meu asseio, teimo em que se divulgue, não entram perfumes, nem sequer água-de-cheiro, e as mãos definham-se-me a olhos vistos, mercê do sumo de limão, única substância com que as lavo.

Filha dos mais altos, ensino às monjas, e à parentela que as visita, que uma senhora se reconhece por quanto lhe cobre a cabeça, e por aquilo em que enfia os pés. Nada sobre isto determina a Regra da Nossa Mãe Santa Clara, e julgo não haver incorrido em soberba, ao avançar com semelhantes prescrições. Insisto em tratar pessoalmente da mantilha de cambraia, e dispenso a goma no escapulário, costume ofensivo da pobreza que abracei. Do meu tempo de camareira da Rainha, e de preceptora do Rei pequenino, seu neto, criança caprichosa e encantadora, guardei o poder de influenciar pelo exemplo, movimentando para a Coroa quem a sirva melhor. Nenhum luxo reivindico, exceto o de que me peçam conselho, e de que me atribuam o engenho de o prestar.

Substituí o abanico pelo rosário que nunca mais deixei de desfiar, menos concentrada hoje em dia, e ora esquecendo-me de uma camândula para passar à seguinte, ora repetindo a reza sem avançar no mistério. Vêm os pescadores da Madragoa e de Santos, a cumprir as promessas a Nossa Senhora da Piedade e da Esperança, estendem-me diante da cátedra seiras de robalos e safios, e levantam para mim uma vozearia de louvores e reclamações. Atendo-os com paciência, e ofereço-lhes o sorriso da compaixão, mantendo-me atrás da banqueta com a almofada de damasco em cima. Eis o maior esplendor que me concedo, a fim de que não me confundam a austeridade dos votos com a limpeza do sangue.

Espero que saiam aos poucos, e ouço-os à distância com suas juras e seus protestos. Cuidando de não turbar as irmãs, vou devagarinho cortar a talisca de marmelada que meto rapidamente à boca, e outra ruga se cava na minha face direita.

Mário Cláudio. Expresso, 14 de setembro de 2020


Mário Cláudio publica no Expresso uma série de crónicas inéditas dedicadas a portugueses marcantes, desde a Idade Média até à contemporaneidade. Começa com o retrato de Dona Joana de Eça, de autor desconhecido do século XVI, e terminará com Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. Há uma subtil diferença nos textos. Nos autorretratos, a voz é a do narrador. Nos retratos, a voz é a do retratado. Mário Cláudio é o único autor português a receber por três vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.


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