Crónica | Dona Isabel de Moura, de Mário Cláudio



Dona Isabel de Moura















Nunca me agradaram os dias de Verão, quando o calor me obriga a erguer a fímbria do vestido, a refrescar-me com um palmito, e a dessedentar-me com sucos de laranja. Desde sempre o frio habita em mim, e na harmonia com que nele moro, amiga do arrepio que me inteiriça o corpo, e me robustece o espírito. Na nossa Quinta da Boavista, tentando descortinar os peixes vermelhos do tanque, sobreviventes à película de gelo da superfície, habituei-me à solidão das raparigas desgraciosas, ignoradas pelas companheiras de suas manas.

Já por essa altura se me estreitava o rosto nas manhãs húmidas, não me inquietando o relance ocasional das minhas feições, reflectidas numa salva de prata, e muito menos a apurada estirpe a que pertencia, e que constitui o cuidado maior das que ficam solteiras. Criaturas como eu, ora se metem em casa, entregues ao seu mister, ora ingressam num mosteiro, a despedir-se de si mesmas na ausência de instrumentos que lhes gratifiquem a vaidade. Chegada a Espanha nos anos de irrisão da pátria portuguesa, nenhuma curiosidade despertavam em mim os teatros da política, dos quais ouvia falar com a indiferença que me inspirava a descrição dos lances de xadrez.

Agasalhada na eterna peliça, acabei por depositar nas filhas as prendas que me distinguiam, o bordado de canotilho, a geleia de medronho, ou as saquetas de alfazema. Mas insistia em que não se envergonhassem de ir avante, isto depois de saberem como se eliminam os piolhos com vinagre, se caça a rataria com trigo-roxo, e se enxugam com flanela as axilas para que não ganhem cieiro.

Só de longe a longe aparece alguém de fora, e que me proporciona, mas sem que eu o admita, um curto pretexto de respiração. Aceitámos o pintor para me tirar o retrato, e que se chamava Domingos Vieira, alcunhado de “o Escuro”. Era um homem pequeno e vagaroso, parecendo pedir licença a cada pincelada para passar à seguinte, e nele supus ter descoberto uma alma gémea. Nas longas tardes de pose, não trocando entre nós meia dúzia de palavras, tornámo-nos confidentes um do outro. No seu silêncio queixava-se da mulher que o aguardava, uma marafona de mãos cruzadas sobre o avental, a confrontá-lo assim, “O meirinho já te pagou?, lembra-te de que não me resta o que pôr na mesa.” Ele comia a sopa com sofreguidão, arrependia-se de um cinzento que bem poderia ter sido mais sombrio, e esquecia-se da fidalga da Quinta da Boavista.

Afago sem que ninguém se aperceba a cabeça de Valério, o galgo que mais prezo, e concluo que nada de momento me compete fazer. Desço ao jardim de buxo, retiro as folhas molhadas que tapam o mostrador do relógio-de-sol, mas não entendo o que me desespera, ao dar conta das horas. Muito juntos, os meus olhos secam de algumas lágrimas, e na minha lembrança é sempre noite cerrada.

Mário Cláudio. Expresso, 16 de setembro de 2020


Mário Cláudio publica no Expresso uma série de crónicas inéditas dedicadas a portugueses marcantes, desde a Idade Média até à contemporaneidade. Começou com o retrato de Dona Joana de Eça, de autor desconhecido do século XVI, e terminará com Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. Há uma subtil diferença nos textos. Nos autorretratos, a voz é a do narrador. Nos retratos, a voz é a do retratado. Mário Cláudio é o único autor português a receber por três vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.

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