Crónica | Boa noite, fantasmas, de Bruno Vieira Amaral

 

















Todas as noites, depois do jantar, o meu avô ia ao clube, tomava a bica, bebia um ou dois bagaços, jogava às cartas e voltava para casa. Levanta-se às sete da manhã, pegava no saco preto de desporto com a marmita preparada pela minha avó, um pano da loiça e uma garrafa de vinho e ia a pé ou de bicicleta até à obra na Baixa da Banheira onde trabalhava como servente de pedreiro. Quando as obras eram mais longe, na Moita ou já a caminho do Montijo, a carrinha do empreiteiro ia buscá-lo à porta do café, a ele e a mais dois ou três colegas.

Regressava ao fim da tarde e seguia para a horta, com o seu poço artesanal com os bidões à volta que todos os dias se enchia milagrosamente e onde milagrosamente ou não o meu avô chegou a apanhar uma espécie de lagostins que, para estranheza e sobressalto da minha avó, fritava numa sertã, temperados com sal, piri-piri e sumo de limão. Na horta havia uma barraca, construída pelo meu avô com tábuas trazidas das obras e fechada a cadeado, onde tivemos uma criação de coelhos que, a certa altura, apanharam uma doença dos coelhos, talvez conjuntivite pois lembro-me de terem os olhos muito vermelhos, cheios de remelas e quase fechados, e morreram todos. Também tivemos uma porca, instalada numa pocilga de cimento erguida pelo meu avô, que alimentávamos com restos e que um dia levámos para a horta do senhor Diogo, nosso vizinho do quinto andar e contínuo na escola secundária, que, com frieza e mão certa, a degolou, abriu de alto a baixo e cujos pelos chamuscou com um maçarico.

O clube. Era do clube que eu queria falar. Às vezes acompanhava o meu avô. O clube já não era o antigo barracão de madeira que tinha sido durante muitos anos e que mais tarde vim a saber ter sido fundado, entre vários pioneiros do bairro, pelo meu tio Lino. Era agora um sólido edifício de cimento, embora mantivesse a traça e as características do provisório barracão que servia de sede e bar do clube local, onde aos domingos à tarde o pessoal se reunia para assistir aos jogos no campo pelado a vinte ou trinta metros de distância. Numa das paredes, devidamente emolduradas, estavam a faixa de campeão distrital e as luvas do Luz, o Dino Zoff da minha infância, que morrera cedo de mais vítima de doença prolongada.

Naquelas noites em que eu acompanhava o meu avô, enquanto ele bebia o café e o bagaço, eu bebia um Nescafé, um carioca de limão ou de café e, uma vez por outra, um Sumol de laranja ou de ananás, acompanhado de pevides, cuja casca salgada eu gostava de morder, ou de amendoins. Para me distrair enquanto ele jogava, o meu avô comprava-me duas ou três saquetas de uma coleção de cromos de carros antigos. Nunca cheguei ao fim, como nunca cheguei ao fim de nenhuma outra coleção, e como não conhecia mais ninguém que a estivesse a fazer, acabei por colar os cromos repetidos na escrivaninha que, naquele verão de 92, quando trabalhei durante três semanas com o meu avô na cortiça, a prima Alzira me ofereceu.

Não sei porquê, nem quando ao certo, mas deixei de acompanhar o meu avô e nunca mais voltei ao clube. O meu avô continuou a ir lá até que se reformou e com o tempo também ele deixou de o frequentar. Só trabalhava o mês ou mês e meio da cortiça, que dava muito dinheiro, e ganhou o hábito de ver as telenovelas que, até então, lhe pareciam coisas de mulheres. Se a minha avó era a espectadora do Pantanal nas noites de sexta, o meu avô era o fiel seguidor das aventuras da mulher-onça quando a telenovela foi reposta à tarde no canal 1.

Enfim, o clube. Há dias voltei ao clube, desta vez com o meu pai. Sentámo-nos num banco das traseiras a beber uma cerveja e a fumar. Daquela posição altaneira vê-se o campo lá em baixo, agora murado e com relva sintética, o campo onde fiz uns treinos a lateral direito na equipa de infantis do Banheirense e no qual, numa tormentosa noite, fui arrastado por uns amigos para um treino dos juniores. Foi dos dias mais felizes da minha vida. Chovia que Deus a mandava. Eu nem chuteiras tinha, joguei a central com uns ténis velhos. Cheguei a casa encharcado e coberto de lama. Tomei um banho quente e fiquei três dias de cama, com febre, tosse e uma alegria irrepetível. Estava para contar a história ao meu pai, mas nesse momento apareceu um rapaz – estou a chegar à idade em que o termo se torna desadequado e que mesmo assim o usamos – boné na cabeça, Super Bock na mão. Não o reconheci. Depois de uns minutos de conversa, ele falou dos irmãos mais novos, o Raul e o Luís, e só aí soube quem ele era. Chamava-se Jorge e os pais tinham sido donos do Caniço, um dos cafés no meio do bairro, onde a minha avó trabalhou como cozinheira e onde eu depois trabalhei como empregado de mesa quando tinha quinze anos, um ano depois das idas ao clube com o meu avô.

O Jorge. O rosto dele veio-me à memória. Ele atrás do balcão do café. Nunca mais o tinha visto. Há uns bons trinta anos que não o via e se me tivesse cruzado com ele na rua não o teria reconhecido, como não reconheci. “É normal, quando saí da prisão fui para França. Estive lá mais de vinte anos”, disse-me para logo acrescentar uma frase que já ouvi da boca de tantos homens e mulheres que já nem sei se devo acreditar na sinceridade de quem as profere: “A melhor coisa que fiz foi ter saído daqui.” Quando acabámos as cervejas, tinha arrefecido. Fomos para dentro. Na televisão estava a dar o jogo do Benfica. Mais caras conhecidas, esculpidas pelo tempo: rugas, cabelos brancos, dentes estragados. Fantasmas, fantasmas.

Era ali que eu me costumava sentar com o meu avô, a abrir as saquetas de cromos enquanto ele olhava para a mão que lhe tinha calhado em sorte e pensava na carta que ia jogar. Voltei para casa com o meu pai ainda antes do jogo acabar. Olhei em volta, mas já não vi o Jorge. Queria dizer-lhe que nós nunca saímos daqui, mas acho que ele sabe isso melhor do que eu.

Bruno Vieira Amaral. Boa noite, fantasmas, Expresso, 8 de outubro de 2020
 

Comentários