Crónicas | A paixão de Pedro, de Bruno Vieira Amaral



A negação de Pedro (1610), por Caravaggio. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.



Dos apóstolos de Jesus, o meu preferido era Pedro. Acredito que a maioria das crianças e jovens que crescem a ouvir histórias bíblicas sintam o mesmo. Porquê? Por que razão Pedro é tão fascinante? Porque é que nos identificamos com este homem pobre, impulsivo e cobarde, fraco e colérico, generoso e triste? Por ele ser tudo isto, por surgir aos nossos olhos, nas breves cenas em que é destacado nos Evangelhos, como um ser humano completo e complexo, extraordinariamente apelativo nas suas qualidades e nos seus defeitos.

Na verdade, a identificação com Pedro numa idade precoce é perfeitamente compreensível. Com o seu voluntarismo e a sua entrega, o coração ao pé da boca quando promete a Jesus que nunca o irá renegar, representa a tangibilidade da crença e os limites da fé. É alguém que abandona a vida de pescador, impressionado com um milagre de Jesus, para seguir este homem, o Messias, e tornar-se “pescador de homens”. Quando, pouco antes de ser preso, Jesus diz aos seus discípulos que ficarão escandalizados com ele pois está escrito que as ovelhas dispersarão quando o pastor for ferido, Pedro protesta: “Ainda que todos se escandalizem, nunca, porém, eu.” Pedro precisa de verbalizar a sua crença, de a afirmar, pois essa é a sua maneira de tentar afastar a dúvida do espírito. É um homem a oscilar entre a fé e a dúvida. É então que Jesus lhe diz que, antes de o galo cantar, Pedro o irá renegar três vezes.

Numa passagem anterior, relatada no Evangelho de Mateus, Pedro pede a Jesus que lhe permita caminhar sobre as águas, mas, ao sentir o vento forte, tem medo e afunda-se: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?”, pergunta-lhe Jesus. Estas oscilações emocionais, estas alternâncias do estado de espírito, desgastam-no. No final, Pedro está cansado. Aonde o levará a verdade? Será aquilo a verdade? Valerá a pena todo o esforço e sacrifício? Quando a multidão chega para prender Jesus no Jardim do Getsémani, é Pedro, apenas segundo o Evangelho de João visto que nenhum dos outros identifica o agressor, quem tira a espada e decepa a orelha de um dos homens do Sumo Sacerdote.

Ele, que era capaz desse gesto explosivo, de ir à guerra, de lutar pela vida de Jesus, revelara-se, no entanto, incapaz de se manter acordado enquanto Jesus orava. No meio do tumulto, com a adrenalina da violência, Pedro não se esconde, mas entregue à sua força de vontade, à sua disciplina, fraqueja, adormece como todos os outros. Jesus conhece-o. A profecia de que Pedro o irá negar releva menos da sua divindade, dos seus dons sobrenaturais, do que do seu conhecimento do coração humano. Pedro diz que nunca o fará simplesmente porque não se conhece a si mesmo. É corajoso, é volátil, acredita e duvida, saca da espada e adormece.

Quando Jesus é levado, Pedro segue-o à distância. Este pormenor da distância, mencionado nos evangelhos quase descuidadamente, como se não tivesse importância, significa a separação entre o mestre e o discípulo: até ao fim Jesus estará sozinho e nem mesmo o seu apóstolo mais fiel ousará intrometer-se entre ele e os seus algozes. E nós sentimos que se Pedro não o faz não é tanto por obediência às palavras de Jesus, mas por cobardia, dúvida e medo. Se, ainda assim, não o censuramos é porque sentimos o mesmo que ele. Tal como sentíramos que teríamos sido nós a sacar da espada para ferir o guarda, também sentimos agora que seríamos tão cobardes, receosos e hesitantes quanto Pedro. Também nós teríamos acompanhado Jesus à distância.

Ocorre então um dos momentos mais belos e significativos não só dos Evangelhos e da Bíblia, mas de toda a literatura: a negação de Jesus por Pedro. São pouquíssimas linhas, que parecem ainda mais pequenas se pensarmos no impacto que tiveram e como ainda continuam a ressoar no espírito de quem as lê e nunca mais as pode esquecer. Não tenho dúvidas de que o meu amor por Pedro se deve, em primeiro lugar, ao gesto impulsivo de cortar a orelha ao servo do Sumo Sacerdote e, acima de tudo, a esta passagem crucial na história do Cristianismo.

Erich Auerbach, no seu célebre ensaio "Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental", aborda a cena em comparação com outras passagens da tradição greco-latina, e a riqueza humana desta torna-se ainda mais evidente. Pedro é um homem comum, um pobre pescador que abandonou tudo o que tinha para seguir Jesus. O episódio não tem qualquer importância histórica, não envolve grandes personagens nem decisões dramáticas, é apenas um momento na vida de um homem que pôs a vida nas mãos de outro que ele acredita ser o Filho de Deus, rodeado de pessoas da sua condição social. Resumindo, não há nada nesta cena que os historiadores e escritores da antiguidade considerassem digno de tratamento literário.

Pedro não é um general, um imperador ou um guerreiro; não é um Aquiles, nem um Ulisses, nem tem nenhum dos atributos do heroísmo. É apenas um homem. E se as crises servem para que os heróis se revelem – ainda que os heróis homéricos nunca se “revelem” heróis, não se transformem em heróis, eles estão destinados a ser heróis, o heroísmo é um destino que se limitam a cumprir – Pedro revela-se humanamente falível e retira-se para chorar amargamente, convicto da sua fraqueza e da sua cobardia, envergonhado pela culpa, consciente da sua condição de pecador. O espírito fogoso apaga-se naquele momento e, com ele, o orgulho.

Ao contrário dos heróis planos e previsíveis dos gregos, Pedro, um pobre pescador da Galileia, é retratado na sua completude humana porque o que há de mais importante na sua história não são os acontecimentos exteriores, as peripécias, as anedotas, mas o drama da consciência. É nesse lugar, no interior da consciência de Pedro, que o leitor é instalado, e não no lugar de espectador das suas aventuras. É por isso, por acompanharmos o seu percurso até ao clímax em que se ele se (re)conhece a si mesmo e constata que não é tão bom e tão puro quanto desejaria ser, que está condenado a ficar aquém da imagem que tinha de si, que não é digno do amor e da amizade de Jesus e que, mesmo assim, Jesus ama-o e é seu amigo, que o amamos como a nenhuma outra personagem bíblica, como a raras personagens da história da literatura.

Expresso, 15 de outubro de 2020

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