+Leitur@s | Lugar para dois, de Miguel Jesus





LUGAR PARA DOIS
Miguel Jesus
Casa das Letras, 2020
240 págs.
Romance


Sinopse da Editora

Depois do sucesso da inauguração do Metropolitano de Lisboa, Daniel Stoffel, responsável financeiro do projeto, parece poder escolher o futuro que quiser. Porém, a morte da filha num acidente estúpido enche-o de uma culpa que de não se consegue libertar. Desfeito o casamento, começa a afundar-se na bebida, até que um amigo lhe sugere que deixe Portugal, onde tudo aconteceu, e tente recomeçar a vida noutro lugar. Instala-se, então, num lugar recôndito de Moçambique, onde uma velha negra o ajuda nas tarefas domésticas e lhe leva jornais que o põem a par dos movimentos independentistas das Colónias e das mudanças por que a Metrópole vai passando.

Apesar da vontade de ficar sozinho, o frondoso embondeiro que o protege da curiosidade alheia tem uma frase riscada no tronco que parece traçar-lhe um destino diferente, insistindo na paternidade que lhe estava destinada. E, por mais que Daniel a renegue, é nesse caminho que poderá encontrar o próprio perdão.

Belo, duro, mágico e ternurento – com uma banda sonora exclusiva e um toque africano no colorido das palavras e das paisagens –, Lugar para Dois é um romance excecional sobre a culpa, o amor e aquilo que ainda tem para dar quem julga que, afinal, já perdeu tudo.


O que diz a crítica

O título não me motivou grandemente, pareceu-me ‘delicodoce’ demais, e pretensiosa a menção “romance para ler e ouvir”. A linha abaixo ficou-me, porém, nos olhos: “Finalista do Prémio LeYa”, o que por si recomendava a leitura. Acresce que o nome do autor acordava em mim alguma reminiscência e apenas quando anglicizei o apelido, Miguel Gizzas, percebi porquê: era o ‘inventor’ de um novo conceito em que literatura, cinema e música se interligam numa boa história, já com dois ‘romances musicais’ publicados na Gradiva (2014 e 2017) e espetáculos a que chama “cineconcertos”. 

Olhei melhor: a capa trazia-me o interesse de um Gizzas a escrever a partir da sua identidade própria, e o que li na contracapa dissipou as minhas reservas. Valeu a pena. Para preconceituosos como eu, Lugar para Dois é a tradução de uma inscrição em Xítsua (Ndau ya vanhu vambiar) num enorme embondeiro algures em Inhassoro, sítio que, pensava o protagonista, “nem nome tinha”. Mas a melhor parte é entrar na história que, como todas as boas ficções, se entretece sobre referentes espaciotemporais de grande precisão desde o início: a “metrópole” e as “colónias”, a inauguração do metropolitano de Lisboa (1959), o acordo de paz em Moçambique (1992). Entre estes contextos enquadra-se uma cronografia em jeito de filamento mágico, encadeando harmonias esquecidas com equilíbrios precários que se quebram em culpa e denegação. 

A trama — e as personagens, muitíssimo bem cons­truídas — privilegia a força das emoções sobre o desamparo de uma existência em permanente procura de punição. Protagonista e narrador desassociam-se a partir do momento em que, para um, o medo é o de não tentar, porque “a vida é feita de durantes, não de finais” e, para o outro, é de o “reviver”. Li uma primeira vez, pensando que a ‘invenção’ atrapalharia; rendi-me à estranheza de uma experiência que transformou um romance bem escrito em algo mais.

Luísa Mellid-Franco, E-Revista Expresso, Semanário #2502, 10 de outubro de 2020


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