Crónicas | O aniversário do amigo, de Bruno Vieira Amaral

 







Lembro-me quase sempre do aniversário dele, mas nem sempre lhe mando uma mensagem a dar os parabéns. Ele é o amigo mais antigo que tenho, o meu amigo pré-diluviano, o meu amigo jurássico, meu amigo fóssil, meu amigo oceânico. O oceano era o aquário que ele tinha em casa, onde brilhava uma luz azul e nadavam peixes coloridos como os que pintávamos nas folhas de papel dos cadernos pautados.

Isto foi antes da escola primária. Depois fomos colegas da primeira à quarta classe. Mais tarde, voltámos a encontrar-nos no sétimo ano e, ainda mais tarde, já adultos, no mesmo trabalho. A nossa amizade, que esmorecera naqueles anos de afastamento em que tantas coisas tinham acontecido, reacendeu-se. É verdade. As amizades é que se reacendem. O amor é um lume constante, inapagável. As paixões, uma vez extintas, nunca mais são as mesmas, por muitas ilusões que se tenham. Mas as amizades esfriam e reacendem-se. A nossa reacendeu-se e, apesar de novo afastamento físico, nunca mais se apagou.

Então, lembro-me quase sempre do aniversário dele e nem sempre ele sabe que eu me lembro. Mas eu fico satisfeito só de me lembrar, mesmo que não lhe mande mensagem. Não é estranho. É uma coisa que tenho comigo. Naquele dia, penso nele e comemoro em silêncio a nossa longa amizade. Este ano, deitado numa cama de hospital, um pouco mais vulnerável, um pouco mais disponível, mandei-lhe uma mensagem. “Já vais nos 43. Cuidado com as curvas!”

Passado pouco tempo, a resposta veio com aquele calor humano que é só dele, como se ainda ontem tivéssemos estado juntos – e já não estamos juntos há quatro anos: “Porra, meu irmão. Passou bué rápido… ainda ontem estávamos no recreio a jogar à bola!” Tanta coisa aconteceu e ainda tanto haverá para viver – haverá? – e a sensação é a de que passou tudo muito rápido, de que uma parte rica e feliz da nossa vida vêmo-la cada vez mais distante pelo retrovisor e, ao contrário do que acontecia na infância e na juventude, olhamos para o futuro com ceticismo, prudência e receio. Receio, sim. Eis-nos a chegar à idade da perda.

E, no entanto, nada nos impede de ir à procura do que nos falta, do que nos escapou. Em todos estes anos, muitas possibilidades de vida se esfumaram, mas há muito – haverá – que podemos alcançar, experiências que podemos saborear pela primeira vez, realidades que estão à nossa espera se soubermos ir ao seu encontro. Voltarei a estudar? Irei aprender uma nova língua? A tocar um instrumento? A nadar? O tempo escoa-se e a vida passa e esses desejos por concretizar, que até há pouco eram faróis da nossa existência, esperanças adiadas mas vivas, tornam-se pesos que arrastamos dentro de nós.

Dizem que mais vale tarde que nunca ou que nunca é tarde para isto ou aquilo. Mas, não sendo tarde, já não é o tempo certo. E há mesmo um tempo certo para cada coisa. Ir atrás do que não fizemos na altura certa não nos devolve o tempo perdido. Nunca poderei ter doze anos e saltar para a água sem medo. Nunca poderei tocar as teclas de um piano com a audácia infantil de quem não tem vergonha de falhar. Às vezes chegamos tarde. Às vezes falhamos o encontro. Às vezes não mandamos a mensagem de parabéns no dia certo. E a mensagem que mandamos no dia seguinte já chega tarde. E assim passam os anos. Rápido, quando ainda ontem estávamos no recreio a jogar à bola.

Bruno Vieira Amaral. O aniversário do amigo. Expresso, 12 de novembro de 2020


Comentários