Pensar e saber quem somos a partir das narrativas

 

       Imagem: Blowing letters, pintura de Leslie Balleweg (pormenor)



S

empre que pensamos em leitura e formação de leitores, o que nos vem imediatamente à cabeça é a literatura. Parece haver uma relação quase obrigatória entre esses dois lugares. É bom que seja assim, que a literatura esteja intransigentemente presente em nossas vidas, pois os textos literários dizem-nos do mundo, do tempo e de quem somos, incluindo as relações que vivemos, de um jeito que contempla aspetos e nuances improváveis fora da experiência artística (penso aqui no espanto de Riobaldo ao saber, às nossas vistas, que Diadorim era uma mulher, numa das criações mais bonitas de todos os tempos). Sustentadas nesse entendimento, que muitas vezes nem chega a ser um entendimento, mas sim um costume, uma prática, seguimos oferecendo, quase exclusivamente, livros de literatura às crianças e aos adolescentes em casa, na escola e na biblioteca. Mas, como a própria literatura e as artes, de maneira geral, nos revelam, o mundo é grande, complexo e abre-nos muitos caminhos para a sua compreensão, extrapolando o que nos toca direta e objetivamente.

Ainda incomum por aqui, para além dos chamados “livros paradidáticos” e especialmente entre as crianças, a leitura de textos não literários, identificada por muitos professores, bibliotecários, editores e pesquisadores como “informativos”, aos poucos apresenta-se aos pequenos leitores brasileiros. Os temas são os mais diversos e despertam a curiosidade das crianças: dinossauros, o céu e as estrelas, vulcões, animais exóticos, florestas, breves biografias de cientistas e artistas, a vida e a morte em diferentes culturas, a sexualidade… Por isso, precisamos fortalecer a produção, a publicação e a circulação dos livros não literários entre as crianças e estimular o seu interesse pelo conhecimento nas suas mais diversas abordagens. Em perspetivas distintas e interdependentes, literatura, artes e ciência devem fazer parte da educação das crianças, desde muito pequenas, contribuindo para a formação de uma visão ampliada e diversa do mundo. Infelizmente, o conhecimento científico ainda se restringe ao básico na educação brasileira, especialmente no que toca à rede pública de ensino. São quase inexistentes os laboratórios, escassas as visitas a museus e a reservas ambientais e muito limitadas ao currículo a apresentação e a discussão de crenças e sistemas de pensamento que explicam o mundo e a vida. Podemos dizer que falta mesmo uma abordagem das ciências nos seus princípios de indagação e investigação, anterior ao conhecimento específico que produzem.

Sabemos que, isoladamente, os livros e as leituras, assim como a escola, podem muito pouco. Mas esse pequeno poder traz em si uma também pequena promessa: pensar e compreender quem somos a partir das narrativas e do conhecimento produzido pela humanidade ao longo do tempo e do espaço. Sem hierarquia definida, cabendo a cada pessoa a construção de sua trajetória, leituras literárias e científicas fazem parte de qualquer formação que tenha no horizonte o desenvolvimento humano e a ampliação de liberdades, desde a infância.

Fabíola Farias. Muitos jeitos de conhecer o mundo in Revista Emília, novembro 2020

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