Crónica | Para não matarmos a alma
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ALGUNS DICIONÁRIOS COLOCAM COMO SINÓNIMOS DE PRODUZIR OS VERBOS GERAR E CRIAR, O QUE É UM EQUÍVOCO. NÃO SE DIZ “PRODUZIR UM FILHO”, MAS SIM GERAR, POIS UM FILHO É FRUTO DO AMOR
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O presépio desautoriza o conformismo com que lidamos com a amputação da nossa própria existência e da dos nossos semelhantes
Penso que é disto — e não de enfeites e berloques — que nos fala o Natal. De facto, um dos textos inesquecíveis do cânone cristão, a Primeira Carta de João, afirma o seguinte: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos palparam acerca do Verbo da Vida. Pois a Vida se manifestou, nós a vimos e dela damos testemunho” (1 João 1,1-2). O presépio é uma representação radical da vida, em contraciclo com a maior parte do nosso presente, e não só porque a vida é colocada no centro em vez de ser desclassificada e remetida para um lugar secundaríssimo, mas também porque ela se escreve com maiúscula. O presépio desautoriza o conformismo com que lidamos com a amputação da nossa própria existência e da dos nossos semelhantes. Obriga-nos a querer mais do que isto. Revela o ser humano a si mesmo e fá-lo descobrir a sua vocação sublime. Quem o diz é o Concílio Vaticano II, que acrescenta: “Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado, se esclarece verdadeiramente o mistério do homem” (Gaudium et spes, 22).
Alguns dicionários colocam como sinónimos de produzir os verbos gerar e criar, o que é um equívoco. Não se diz “produzir um filho”, mas sim gerar, pois um filho é fruto do amor. Não se produz um abraço, nem a profusão de luz de um sorriso, nem um silêncio, nem a escrita sem letras de um pranto, nem uma amizade, nem o cuidado solidário, nem aquela arquitetura íntima de relações que é o miolo de uma casa; não se produz a indagação sem fim e o espanto sobre o qual a vida constantemente nos debruça, nem o desejo e o encontro que o excede, nem o repouso de certos instantes e a dança para a qual ele nos sonha, nem o convite ou a chegada à festa. Não se produz aquilo que o presépio significa. O Evangelho de João explica-o antes assim: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu próprio Filho” (Jo 3,16).
José Tolentino Mendonça. E-Revista Expresso. Semanário#2513, de 24 de dezembro de 2020
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