Crónica | Contra os nossos dias, de José Tolentino Mendonça
O QUE QUER QUE VENHA A SEGUIR NÃO PODE SER UM MERO VIRAR DE PÁGINA. DE UM MODO QUE NÃO PENSÁVAMOS O FUTURO ENTROU-NOS PELA PORTA
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Os acontecimentos grandes ou pequenos do mundo, os factos da nossa vida pessoal, quaisquer que eles fossem, vimo-los perfurados pelo zumbido dos números
Esperançosa frase essa que escreveu Albert Camus em tempos também nada fáceis: “No meio dos flagelos aprendemos que existe nos seres humanos mais coisas para admirar do que para desprezar.” É verdade: talvez não voltemos simplesmente ao mundo de antes. Que é, como quem diz: talvez não nos tenhamos tornado piores. Talvez a máscara não se nos cole definitivamente ao rosto. Talvez o distanciamento seja apenas uma forçada esquadria externa que o nosso interior não confirma, bem pelo contrário. Talvez ativemos a nossa responsabilidade por uma ecologia integral, celebrando um novo contrato social com a Criação. Talvez investamos em encontrar equilíbrios mais satisfatórios: entre o lucro e o dom, entre o crescimento e a sustentabilidade, entre o individual e o comunitário, entre o direito a usar e o dever de reutilizar, entre o furor da tecnologia digital e a natureza artesanal da nossa humanidade e do que a ela mais profundamente diz respeito. Talvez aprendamos a interagir de modo mais inteligente com a complexidade do mundo, mas prossigamos também mais disponíveis a nos maravilharmos com a sua desarmante simplicidade. Talvez que entre as competências que mais passemos a treinar estejam a gentileza e a fraternidade. Talvez não deixemos as escolas como realidades isoladas, mas as encaremos como centros de uma ampla rede implicada num pacto educativo de futuro. Talvez, tão claramente como percebemos o lugar da educação física ou da científica, percebamos o lugar da educação emocional e espiritual. Talvez, por fim, troquemos o conflito pela empatia. Talvez, quando pronunciemos o verbo conectar, este já tenha ganho o sentido de uma interação presente e criativa, a 360 graus com a realidade, e não apenas o de estar imobilizado diante de um ecrã. Talvez, finalmente, nos preocupemos mais com o que iremos transmitir do que com aquilo que vamos herdar.
Penso naquela passagem do salmo bíblico, que propõe: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que guiemos o nosso coração na sabedoria.” Termos contado tão dramaticamente os dias deste ano que termina, a que sabedoria nos conduzirá?
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens. E-Revista Expresso. Semanário#2514. 31.12.2020
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