Crónica | Os abraços não-dados, de José Tolentino Mendonça
A AMIZADE, O AMOR, O CARINHO, O CUIDADO NÃO DISPENSAM A DIMENSÃO SENSORIAL
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A interação que estabelecemos uns com os outros não ultrapassa o limiar da intimidade se fica restrita unicamente à dimensão verbal. O tato é o que nos permite sentir o outro e informá-lo, mesmo sem palavras, acerca de nós próprios. O escultor Auguste Rodin, por exemplo, explicava, partindo da artesanal tatilidade da sua arte, que “o corpo é um molde no qual as emoções se imprimem”. A abertura do corpo ao mundo não se realiza sem o tato, que é o seu traço de união primordial. Por fugaz que seja, o tato é uma prova sensível que desmente um dos nossos medos mais terríveis: o do isolamento radical, o da solidão absoluta. Não admira que os nossos corpos humanos tenham necessidade de se exprimir como ‘con-tacto’.
Por fugaz que seja, o tato é uma prova sensível que desmente um dos nossos medos mais terríveis: o do isolamento radical, o da solidão absoluta
A amizade, o amor, o carinho, o cuidado não dispensam a dimensão sensorial. É claro que as palavras são importantes e que, também aí, todos trazemos tarefas por concretizar, porque raramente chegamos a dizer aos outros — mas a dizer mesmo —, quanto eles são importantes para nós. Porém, todos sabemos como as palavras ficam aquém ou como, pelo contrário, se iluminam quando acariciamos o rosto dos que amamos, quando sem apertar apertamos a mão de um velho ou de uma criança, quando tocamos o ombro de um amigo. Esse ‘con-tacto’ é um veículo para o afeto. Não tem um plano. Não se guia por um fim. Mas é capaz de transmitir-nos confiança na bondade da vida. É capaz de garantir-nos que a vida não se dispersa no puro esquecimento: através do vidro fosco entrevemos um fio de sentido. Esse ‘con-tacto’ acontece visivelmente na pele, mas é como se se deslocasse e estremecesse em nós de forma invisível. Podem ser instantes, mas perduram, nutrem, inauguram, confirmam.
O jesuíta e estudioso Matteo Ricci (1552 - 1610), que elaborou uma extraordinária antologia de ditos sobre a amizade, escreveu que “um amigo não é outra coisa que a metade de mim mesmo”. Isto que pode soar como uma definição abstrata, ganha a sua tangível transparência num abraço. Quando os braços se enlaçam incorporamos e somos incorporados no coração uns dos outros, como se no coração do nosso amigo tivéssemos um ninho ou uma pátria. Nesse abandono consentido expressam-se certezas que nos são tão caras: reciprocidade, alegria, ternura, presença, encontro e reencontro, comunhão. O instante do abraço declara-as todas num jorro, e como que as sela na nossa alma. Por isso, o abraço não é só uma amarra, uma pausa onde a respiração repousa: é também um trampolim que nos projeta onde, sem a confiança e a inspiração dos que nos amam, não conseguiríamos chegar.
A pandemia tornou as relações menos táteis. Têm de ser os olhos e as palavras a explicar que gostaríamos de apertar a mão, trocar um beijo ou um abraço e não podemos. Mas a verdade é que passamos a transportar esse vazio em nós. O vazio de todos os abraços não-dados. Que, por vezes, nos pesa como uma ferida e outras nos alenta como uma promessa.
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