Crónica | A filha, de Gonçalo M. Tavares

 




1.

Exposição de Matisse no Pompidou. Online. Até 15 de Março é necessário chegarmos à nossa própria cadeira. O mundo mudou.

2.

Uma história contada por Pascal Quignard sobre o grande pintor Matisse.
Matisse nunca interrompia o seu trabalho. Diante do quadro ficava por ali, obcecado. Não recebia ninguém.
Impossível ser interrompido. Não estou, não posso, não quero. Um quadro era um animal a ser criado e depois acompanhado até ao seu último instante, até ao seu término. Criar, cuidar, fechar; depois virar as costas. Eis o artista e a sua obra. Obsessão.
Um dia, conta Quignard, em Novembro de 1944, quando Matisse no seu atelier trabalhava numa tela, atacando-a com um amarelo fortíssimo, um sobressalto qualquer surgiu à porta. Foi “o dia em que a sua filha Marguerite regressou da sua deportação”.
A sua filha Marguerite estava fraca, magra, “quase irreconhecível”. A porta do atelier aberta e Matisse uns segundos a tentar perceber quem era. Era a sua filha, regressara, fraca mas viva. Matisse “correu para ela e abraçou-a”.
A tela que Matisse estava a pintar ficou atrás dele.
“É a única pintura de Matisse que permaneceu incompleta”, escreve Quignard, “nunca mais Matisse conseguiu meter-se no interior dessa tela para a continuar”.

3.

As pequenas interrupções do mundo miudinho e a grande interrupção: a filha voltou.

4.

Matisse e as guerras, a política e as grandes cores numa tela.
Os seus dois filhos, Jean e Pierre, foram alistados na 1ª Guerra. A casa dos pais de Matisse foi destruída por um bombardeamento. As várias gerações atingidas; não há sítio escondido quando os corajosos e o perigo estão em movimento e choque.
Foi operado ao intestino, em 1941, e teve de ficar no quarto, a recuperar, sempre deitado — durante quase um ano. Desenhava com “um carvão preso à ponta de uma vara de bambu”.
Há imagens invulgares de Matisse deitado a desenhar na parede com este lápis longo.
Não perder a mão, o mais antigo conselho dado a desenhadores, pintores, escritores, etc.
Foi poucos anos mais tarde, então, que a Gestapo prendeu a sua filha, desconfiavam que pertencia à resistência francesa. Terá sido torturada. 

CÉZANNE, QUE MATISSE CONSIDERAVA O GRANDE MESTRE, INSISTIA COM OS SEUS MODELOS PARA ESTAREM QUIETOS. “UMA MAÇà MOVE-SE?”, PERGUNTAVA. E DEPOIS ACONSELHAVA AOS SEUS MODELOS HUMANOS: “POR FAVOR, POSE COMO UMA MAÇÔ

5.

Uma notícia desta semana: várias cartas escritas por Alois Hitler, pai de Adolf Hitler, foram descobertas e analisadas na Áustria. Diz-se que “lançam um olhar mais profundo sobre as origens familiares do ditador alemão”.
O pai de Hitler, frase em si quase estranha.

6.

Cézanne, que Matisse considerava o grande mestre, insistia com os seus modelos para estarem quietos. “Uma maçã move-se?”, perguntava. E depois aconselhava aos seus modelos humanos: “Por favor, pose como uma maçã.”

7.

O sono e a pintura. Os surrealistas acreditavam no trabalho do sono e dos sonhos, na potência criativa deste estado dormente do ser vivo que quando dorme não está verdadeiramente vivo — não consegue, por exemplo dizer sim, nem não, um dos limites importantes; quem não sabe dizer sim nem não, está indefeso.
Mas, claro, quem dorme não está morto. Nem vivo nem morto, dorme — poderíamos dizer.
Mas por isso mesmo os surrealistas quando iam dormir colocavam, com as mãos e com humor, uma placa no quarto, com o aviso: “Silêncio, estamos a trabalhar.”
De facto, o sono e os sonhos, diz a medicina, arrumam e organizam, limpam inteiramente, ou quase, as amplas salas internas da cabeça saltitante; deitam, pois, para o lixo, o desnecessário, mas há ainda quem defenda que também no sono está escondido o decisivo oráculo e umas tantas eurekas por noite.
O sono: Matisse gostava de observar e desenhar quem dormia. Talvez uma herança de Cézanne: nem sempre, claro, mas por vezes é bom os humanos estarem quietos.

8.

O sono. Marguerite, a filha de Matisse, aparece em mais de quarenta quadros do pai. Não posava como uma maçã, mas por vezes posava enquanto dormia.
(E uma questão rápida. Será que é possível posar enquanto se dorme? Como se faz pose, como é que um corpo se coloca numa posição determinada — pose e posição são da mesma família, pose é uma posição suspensa, uma posição pensada, intencional — pois, então, como se posa enquanto se dorme? Uma questão.)
Mas sim, o essencial é isto: um importante quadro de Matisse: “Marguerite a dormir.” É de 1920.
Matisse pintou a filha constantemente de 1906 a 1945.
Pintou-a antes e pintou-a depois do seu regresso da prisão, depois de ela ter invadido o seu atelier e o quadro amarelo, que ficou para sempre interrompido.
Só não pintou a filha quando ela estava presa.

Tavares, Gonçalo M. Os cadernos e os dias - História fragmentada do mundo. E- Revista, Semanário Expresso # 2523, de 5 de março de 2021

Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia




Henri Matisse a desenhar na parede do quarto, alguns meses antes da sua morte, em 1954. Foto de Walter Carone.




Marguerite, 1907 - Henri Matisse - WikiArt.org




Marguerite a dormir- Henri Matisse




Pode ver mais obras de Matisse no Wiki art e no Google Art & Culture.




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