Ebook | A ficção Camiliana: a escrita em cena

 






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Em cena...Camilo! 

CAMILO, assim, sem mais...o primeiro profissional das letras portuguesas, um dos poucos que não precisam do apelido para serem identificados. 

Do século XIX até aos nossos dias, o nome foi sendo encarado comum olhar metamórfico, sofrendo as correspondentes transformações: o ‘autor’ onde se confundiam ‘escritor’ e ‘narrador’ num determinismo biografista simplificador (Positivismo) é ‘morto’ no início de século (Formalismo) em benefício da autonomia do mundo ficcional, mas os esquemas novelísticos (Estruturalismo) revelam-se insuficientes para esclarecer a especificidade do discurso camiliano, pelo que a travessia do século vai constituir uma longa e sinuosa tentativa de recuperação dessa instância que, figurando o discurso, nele se configura diversamente, criando nexos entre textos, dominando a comunicação, correspondendo ao desejo do outro que a leitura, afinal, é. Se a trajetória teórica é a da conceptualização da figura do autor, do narrador e do homem, nas suas relações possíveis, mais se impõe com Camilo, o nosso, do nome próprio, da nossa leitura. 

Em geral, o universo camiliano é um universo contrastivo (luz/sombra, riso/lágrimas, tragédia/comédia, peripécia/lirismo, banalidade/erudição) organizado em torno de uma figura nuclear: o sujeito em cena , o eu que se ostenta na escrita, na narração e no comentário reflexivo, que oscila entre o prazer de contar e o drama da escravidão da escrita, a afirmação desassombrada e a fragilidade humana, a reivindicação de veracidade e a sinalização da ficcionalidade, a declarada singularidade de uma narrativa e a sua irónica e escamoteada vinculação a outra(s)...um eu que se diverte na indecidibilidade estatutária do que conta, na divergência entre o que anuncia e o que faz, na fronteira entre a fidedigni-dade e a sua falta, no gozo da manipulação da linguagem. Eu central que chega a explicar a sua po(i)ética numa espécie de curso de escrita criativa (Vinte Horas de Liteira, 1864), com diversos exemplos comentados. Eu que mostra dominar os esquemas acionais, os modelos textuais e a receita romântica (pela qual reconhece corresponsabilidade), mas que não resiste a pô-los em causa, a criticá-los, a rir-se deles, num processo que atinge o desconstrutivismo avant la lettre (O que fazem mulheres, 1858). Eu que articula o diverso, criando pontes no seu universo, remetendo, evocando ou...simplesmente aludindo de um modo que só o seu leitor de culto entende (como esse António Joaquim das Vinte Horas de Liteira, afinal personagem diverso em diversas outras novelas, seu desdobramento, também). Eu que fala da sua contemporaneidade ou anterioridade (genológica, nacional), falando de si, mas deque fala também quando parece falar de si: ao comentá-la, ao plasmá-la em estórias antigas (da sua família e da província, da história nacional),e ao falar de si nelas. Fazendo-o, adensa de emocionalidade o traço com que esboça a figura, o acontecimento, a história: tudo parece depender da modalização que imprime a voz autoral, onde o narrador e a personagem confluem, deixando tudo sem densidade própria...tudo adquire vitalidade no fulgor dessa comunicação em que sentimos vibrar o timbre camiliano, o seu ‘grão da voz’. Foi, aliás, essa a aprendizagem da elaboração do Dicionário das Personagens da Novela Camiliana (2002): todo o verbete ensaiado sem citação era insuficiente para desenhar o contorno ficcional, apenas a citação, o verbo camiliano garantia a vibração vital. 

Em grande angular, constata-se que as trevas invadem a sua pena irremediavelmente no fim-de-século, no fim da sua própria existência. Subsiste, porém, o poder encantatório dessa portentosa e virtuosa voz narrativa. Camilo é ainda dos autores mais lidos pelas gerações até à década de 70 e 80 do século XX nas bibliotecas públicas. 

Moizeis Sobreira oferece-nos o seu retrato de um Camilo em cena, surpreendendo-lhe a escrita, iluminando esse momento fundador da teia penepoliana com que o autor nos prende. Fá-lo com a segurança do ensaísta, com a sensibilidade de um leitor de culto, com a emoção de Camilo: percorre o itinerário acima enunciado, problemático e sedutor. Aceitemos o convite para esta partilha de um universo que Camilo soube gerar em torno de autorretratos sucessivos, às vezes, dissimulados pela alteridade...que não se conseguiu nunca desligar do nome que o subscreveu, encenado com rosto, dramas pessoais e familiares, mas também com a gargalhada. Aceitá-lo é revisitar um autor que põe em cena um mundo ritmado pela letra e pela escrita-leitura, mas é também reencontrá-lo e reencontrarmo-nos nele, no espelho da sua conversa seriada pelas novelas, através delas, onde está fantasmaticamente presente. Sigamos Moizeis Sobreira. 


Annabela Rita 
CLEPUL – FLUL


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