Livrarias, texto de Pedro Mexia

 


NUNCA ACONTECEU AS LIVRARIAS ESTAREM ASSIM FECHADAS MESES SEGUIDOS. UMA CIDADE SEM LIVRARIAS NÃO É UMA CIDADE

F

azem-me falta, as livrarias. Nunca aconteceu estarem assim fechadas meses seguidos. E ainda que entendesse a decisão, que não entendo, fazem falta. Uma cidade sem livrarias não é uma cidade.

Das livrarias de Lisboa, a minha favorita foi, sem comparação, a Buchholz de antigamente. Foi na Buchholz que gastei o primeiro dinheiro que ganhei, nos anos da faculdade, sentado no chão ou em banquetas tardes inteiras. Foi na Buchholz que descobri a biblioteca como desarrumação, e digo isto como elogio, livros novos ou de fundo, muitos em inglês e francês, fora do sítio devido, empilhados, encomendados, esquecidos. Ainda hoje me espanto com os ensaios exigentíssimos que comprei no primeiro andar da Buchholz muito antes de ter condições para compreendê-los, livros que hoje identifico por causa das etiquetas, do preço escrito a lápis ou dos marcadores escuros e austeros, de que terei guardado, sem exagero, umas centenas.

De certas livrarias lembro-me por causa de determinados livros ou determinadas circunstâncias, um tempo de espera, a casa de alguém, pessoas que quero lembrar ou esquecer. Antes e depois de uma sessão no Londres ou no King, na altura em que ia ao cinema umas três ou quatro vezes por semana, lembro-me da Barata, ainda hoje um dos espaços de que mais gosto, livraria de onde trazia sempre aquilo de que não estava à procura, sobretudo as não-novidades, placidamente guardadas nas estantes de correr até que chegasse o leitor a que se destinavam. Lembro-me também da Arco Íris, criteriosa, com muitos livros sobre literatura portuguesa e uma clientela de professores. Ou da Lácio, durante uma década a única livraria-alfarrabista que frequentei, onde gastei tanto dinheiro que tive vergonha, de onde trouxe muitos dos introuvables da minha biblioteca. E da Alcalá, a abarrotar de edições universitárias espanholas, da patrística a Ortega; da Britânica, à esquina do British Council, onde havia os poetas da Penguin, da Oxford, da Faber; e das sucessivas encarnações da Livraria Francesa, às quais devo não ser exclusivamente anglófono (e onde vi, atónito, Herberto Helder, que eu até aí não tinha a certeza de que existisse).

A Buchholz, fundada em Lisboa nos anos 1940 pelo livreiro alemão Karl Buchholz | António Pedro Ferreira

Da adolescência lembro-me de livrarias como a Castil, integrada no elegante edifício da Rua Castilho, que visitava talvez com a minha mãe ou as minhas tias. Da Europa-América, onde ia com o meu pai, de regresso do trabalho à hora de almoço, e onde me atraíam as estantes que desciam connosco ao andar de baixo. De uma outra na Estefânia, demasiado grande e já meio ao deus-dará. Depois, vieram as livrarias jurídicas, às quais não dedico qualquer nostalgia. E algumas bizarrias, como a Escolar Editora no aquário fantasmático do Caleidoscópio. Quando escrevia em cafés do Chiado, passava na Bertrand e na Sá da Costa ou na incompreendida Portugal, um armazém de improbabilidades. E tornei-me assíduo da Ler Devagar, então no Príncipe Real, onde eram garantidos os escritores do contra, os das esquerdas e os das direitas, os Debords e os Célines. Houve também a Bulhosa de Entrecampos, desafogada e clara, com uma boa escolha de livros importados. Ou a minúscula Cotovia, com o excelente catálogo da editora. E outras ainda, uma delas a meio da Avenida da Liberdade, onde comprei “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, livrinho que marcou um antes e um depois.

Algumas dessas livrarias encerraram em definitivo, outras enfrentam dificuldades, umas já não são o que eram dantes, outras mantêm-se; mas agora estão todas fechadas. E de que vale uma cidade sem livrarias?

Mexia, Pedro. Livrarias, E-Revista Expresso, Semanário#, 2523, 5 de março de 2021 

Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia


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