As bibliotecas são como aeroportos

 

Imagem: Françoise Collandre


«As bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem  está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros.» 

Valter Hugo Mãe



Segundo o último relatório estatístico da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, que data de 2019, há em Portugal 441 bibliotecas, 58 das quais são itinerantes. Estas bibliotecas albergavam, à data, 12 milhões e 500 mil livros e naquele ano emprestaram-se 2 milhões de livros aos cidadãos.

Não serão estes dados argumento suficiente para pôr um fim à eterna procura de uma alternativa ao aeroporto de Lisboa? No meu entender, nada bate as inúmeras valências destes 441 aeroportos espalhados pelo território nacional e gosto particularmente daqueles 58 aeroportos sobre rodas que vão entregar viagens gratuitas à porta dos leitores.

Aliás, temo que até os operadores de viagens possam ter os dias contados. Por muito criativos que sejam, não me parece que consigam fazer concorrência aos 12 milhões e 500 mil destinos de viagens sem custos e zero emissões de carbono que existem só nas bibliotecas públicas nacionais. Sejamos honestos, não há benchmarking que bata estas borlas. Este é que é o segredo mais famoso; não é o Algarve, como dizia a campanha publicitária. E só não entendo como é que os 10 milhões de portugueses ainda não aproveitam todos para viajar pelo menos uma vez por ano. 10 milhões de livros emprestados por ano, 10 milhões de viagens… Esse é que era um número digno de orgulho!

Consta que o faraó Ramsés II mandou erguer, cerca de 1200 anos antes de Cristo, uma biblioteca adjacente ao templo do deus Ámon, na cidade egípcia de Tebas. Já agora, abro um parêntesis para sublinhar que as nossas bibliotecas têm à disposição muitas viagens ao Egipto lideradas por guias de renome — Tutankamon, Cleópatra ou Moisés, que é especialista em programas de aventura no deserto. Mas, fora de brincadeiras, na entrada da biblioteca de Tebas, como dizia, estaria escrita a seguinte frase: “Lugar dos remédios da alma” ou “Clínica da Alma”, consoante as traduções. A noção de que a leitura tem poderes terapêuticos, as raízes da Biblioterapia estão aqui e o significado daquela frase não se perdeu no tempo. Ainda hoje na entrada da biblioteca da Abadia Beneditina de São Galo, na Suíça, uma inscrição sobre a porta anuncia que estamos a entrar no “Dispensário da Alma”.

Toda a biblioteca é uma viagem. Todo o livro é um passaporte sem data de caducidade.”, escreveu Irene Vallejo no seu magnífico livro “O Infinito num Junco”. Afinal, o que podem estes livros, quais remédios literários, fazer pelo “sopro que anima os nossos corpos”? Para onde nos levam os livros das bibliotecas — públicas ou privadas, incomensuráveis (como a de Babel) ou modestas (como a minha)? Se me permitirem uma última piada, dir-vos-ei que as bibliotecas e os livros nos levam “para fora cá dentro” um oxímoro que o Turismo de Portugal deveria permitir que se colocasse sobre a entrada das nossas bibliotecas também.

Na minha adolescência, quem vivia longe da capital, por exemplo, fazia muitas vezes a sua primeira viagem a Lisboa e a Sintra depois de lido “Os Maias”, para percorrer e ocupar, com professores e colegas, os mesmos espaços e ambientes que os personagens de Eça de Queirós. Quantos de vós já não fizeram o mesmo, ir fisicamente a um lugar depois de lida uma boa história, fictícia ou real? Visitei três vezes a antiga Pérsia por causa do relato de viagem “Lua de Mel no Irão”, da canadiana Alison Wearing; incentivada por Pablo Neruda, atravessei por terra a Cordilheira dos Andes, desde Montevideo, no Uruguai, até Isla Negra, na costa do Chile; regressei uma e outra vez a Salvador da Baía conduzida pelos olhos e pelas palavras de Jorge Amado; quis ver o pôr do sol nos terraços da Mesquita de Soleimão, em Istambul, como fez Gracia Nasi, figura histórica e personagem do romance “A Senhora” da autora francesa Catherine Clément; Anne Frank e Bento Espinosa estavam comigo quando visitei o sótão e a Sinagoga dos Portugueses, em Amesterdão; foi Bruce Chatwin que me levou à Patagónia argentina e Miguel Sousa Tavares a S. Tomé e Príncipe, onde vive o espírito do inconsolável Luís Bernardo. E tenho, por causa dos livros, tantos outros voos ainda por fazer, tantas outras estradas por calcorrear.

Os livros à espera de leitores nas bibliotecas são, também, oportunidades de viagem para outras formas de ser. Como afirma o biblioterapeuta francês Marc-Alain Ouaknin, no seu livro “Bibioterapia: Ler é Curar”, ler é permitir que as palavras dos outros dinamizem o nosso universo psíquico, é sermos permeáveis às experiências dos outros, às suas emoções, às suas razões, às suas perspectivas. Não para sermos atravessados por elas como um vidro, ou reflecti-las como um espelho, mas antes para sermos a caixa de ressonância onde ficam a ecoar por vezes durante muito tempo, por vezes a vida toda. Ler oferece-nos novas possibilidades de ser, de experimentar. Neste movimento de abertura, de alteridade e transcendência, o leitor parte em direção ao futuro, percorre o arco de uma história e volta a si transformado.

Não por acaso, tantos fogem dos livros e das bibliotecas como outros fogem dos aviões. Olhar para dentro de nós pode suscitar o mesmo alvoroço que sentimos ao olhar pela janela de uma aeronave quando estamos a dez mil metros de altitude. Por que razão dou por mim a sentir compaixão pelos assassinos de “A Sangue Frio”, de Truman Capote? Por que me irrita tanto Berta Isla, personagem do romance homónimo de Javier Marías? Por que me sinto aliviada lendo o poema “A Hipótese do Cinzento” de João Luís Barreto Guimarães? De onde veio a satisfação mesquinha por ver Lila sofrer na tetralogia napolitana escrita por Elena Ferrante? De onde veio a angústia, a falta de ar perante a morte prematura de Ivan Illitch? E a convicção de que a história sobre “O Pedaço Que Falta” foi escrita para mim?

Viajamos para dentro de nós partindo das pistas de descolagem que são as nossas experiências de vida. Todas importam, mas é fundamental que possamos expandi-las continuamente, frequentando as muitas bibliotecas-aeroporto que temos à nossa disposição — uma das maiores conquistas da vida em Democracia — e abrindo muitos livros, porque a bagagem literária nunca pesa em excesso. Em silêncio ou em voz alta, ler é um exercício profundamente subjectivo que permite descobrir nos textos mensagens que o próprio autor não sabia estar a escrever, orientações que mudam com a passagem dos anos se nos atrevermos a voltar às mesmas páginas uma e outra vez. Nestas viagens não há certo, nem errado. Há uma fonte inesgotável de interpretações justas e mutáveis. Numa biblioteca inteira ou apenas num livro há tantos destinos possíveis, tanta liberdade!

A maioria das vezes pousaremos os pés no solo de forma suave; algumas vezes a aterragem será mais abrupta; poucas vezes, esperamos, de emergência. Uma coisa é certa: a constelação de livros que já lemos e os livros que ainda não lemos forma uma das redes ao nosso alcance para amparar qualquer queda. Agora que despertámos colectivamente para o agravamento das doenças mentais no seguimento da pandemia, apelo a que olhemos, de uma vez por todas, para os livros como ferramentas ao serviço da saúde. Para viajarmos ao encontro dos outros, depois da distância física imposta; para viajarmos ao nosso encontro depois de uma vida a fugir do nosso melhor potencial.

Vamos viajar juntos?


Um texto sobre bibliotecas, livros, viagens e Biblioterapia. (2021). Retrieved 18 May 2021, from https://abiblioterapeuta.com/2021/05/18/um-texto-sobre-bibliotecas-livros-viagens-e-biblioterapia/?fbclid=IwAR3xayB2eBUbu2feN0Dj1StggmetEvv-SJqGNkRcl-Yp-VsDDO3PYB9rDNA



Comentários