O outro lado dos livros | O ego dos escritores

 




A principal tarefa de um editor é lidar (bem) com o ego dos seus autores

Q

uando, em 1970, entrei na Editorial Inova, comecei por onde se deve começar: por baixo. O meu trabalho quase que se resumia a redigir uma espécie de prospetos publicitários, que depois eram enviados pelo correio a uma lista de potenciais compradores. Mas também me competia, uma vez por outra, ir entregar provas aos autores. Foi assim que conheci Eugénio de Andrade, que na altura residia na Rua Duque de Palmela, por trás da Escola de Belas-Artes. Dessa primeira vez recebeu-me com a delicadeza que o caracterizava e, à despedida, ofereceu-me um bilhete de elétrico... já usado.

Perplexo com tal “presente”, vim todo o caminho a matutar no seu significado. Até que, como numa epifania, percebi: aquele bilhete tinha sido usado por ele e tinha, portanto, um enorme valor acrescentado.

Manifestações deste tipo encontrei-as ao longo de toda a minha vida de editor. Um dia, já na ASA, fui ter com Vergílio Ferreira, para tentar resolver um problema sensível: ele ameaçara pôr-nos um processo pela publicação de uma edição especial da “Aparição”, que, no seu entender, não correspondia ao que fora acordado no contrato. Eu não conhecia Vergílio Ferreira pessoalmente e, ainda por cima, tivera uma “pega” jornalística com ele nos idos de 75, que dera origem a que nos seus “Diários” me desancasse com alguma severidade. Não ia, pois, muito à vontade.

Vergílio acolheu-me cordialmente e passou o tempo todo a mostrar-me as edições estrangeiras dos seus livros e as críticas altamente positivas que lá por fora recebera. Quando, no fim, quis abordar o assunto do processo, disse-me: “Esqueçam, esqueçam, no fundo não é lá muito importante.”

Não há aqui qualquer especificidade nacional. Quando, na Dom Quixote, começámos a publicar a obra de Michel Tournier — à época um dos mais conceituados escritores franceses —, eu e o João Carlos Alvim fomos visitá-lo ao velho presbitério recuperado onde vivia, em Choisel, a cerca de 40 quilómetros de Paris. A casa tinha um ambiente inesquecível, e nós preparávamo-nos para ter com ele uma conversa profunda sobre os seus livros e sobre o que estava a escrever. Não foi possível: Tournier passou o tempo todo a mostrar-nos o sofá onde lia, a mesa onde se sentava a trabalhar, a caneta com que escrevia... E no fim, à despedida, pediu-nos que lhe mandássemos mais exemplares das traduções portuguesas, porque havia ali, a dois passos, um bairro de emigrantes.

Perguntar-me-ão: doentio? De modo nenhum. Quem passa um, dois, três anos da sua vida à volta de um livro e das suas personagens, é natural que dê ao que faz uma importância que o leitor por vezes não compreende. Mas que um editor tem de compreender. Como me dizia um velho confrade estrangeiro, ironicamente, a principal tarefa de um editor é lidar (bem) com o ego dos seus autores.

Manuel Alberto Valente. "O ego dos escritores" - O outro lado dos livros. Expresso, Semanário#2532, 7 de maio de 2021


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