Crónicas | Ontologia Portuguesa

 


Arcadas do Terreiro do Paço, Lisboa. Fonte da imagem



TODOS OS TEXTOS DE ESTEVES CARDOSO ABORDAM UM TEMA APENAS, INSISTEM NUMA ÚNICA PREOCUPAÇÃO, INVESTIGAM SOMENTE A CAUSA DE UMA COISA: PORTUGAL


V

asculhando entre os fragmentos de Arquíloco, o filósofo Isaiah Berlin encontrou um obscuro verso que parecia esculpido à medida para cutucar os seus leitores ingleses, em parte habituados, em parte ainda reticentes à combinação de conceitos com que ele operava na discussão da história das ideias. Arquíloco é provavelmente o poeta grego mais antigo de que nos chegou notícia e o mencionado verso dizia o seguinte: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande.” Berlin distanciava-se do sentido literal da proposição que contrapõe as avultadas astúcias da raposa à única, mas eficaz estratégia do ouriço. Na verdade, estava mais interessado num trabalho tipológico, recorrendo às figuras da raposa e do ouriço para descrever a fisionomia de duas famílias de espíritos. A daqueles que perseguem múltiplos interesses e dessa forma conhecem muito, mesmo que através de um caminho que parece dispersivo, descontínuo ou contraditório — e que são as raposas. E a dos que partem apenas de um eixo único e central, de uma realidade ou obsessão que atravessa persistentemente tudo o que dizem e fazem — e que se configuram como ouriços. Os que se posicionam do lado da raposa movem-se na realidade a vários níveis, reveem-se numa ampla gama de experiências e objetos, convivem bem com a incompletude e o desencaixe. Do lado do ouriço estão os que se nutrem de uma visão interior unitária, de um fulcro em torno ao qual o mundo e a existência sem cessar se organizam.

Sobre Miguel Esteves Cardoso, a maioria de nós leitores não hesitaria em descrevê-lo como uma irrequieta e sagaz raposa. Voltando estes dias a um dos seus volumes inaugurais, “A Causa das Coisas”, recordei como tudo o que é humano lhe interessa. Tudo é mesmo tudo. Dom Afonso Henriques e o totoloto, o mata-bicho nacional e Joyce, a neura e o sebastianismo, a farinha predileta e Lévi-Strauss, a maledicência e o mimo, o verbo haver e as couves, a cartilha de Domingos Cerqueira e Strindberg, o chá e o papel selado, a lista telefónica e o luto. Creio, contudo, que Miguel Esteves Cardoso disfarça bem: a aparência de raposa esconde afinal um sólido e obstinado ouriço. E o que nos seus textos tem o aspeto de errância compulsiva oculta tão-só a irremovível predisposição monográfica. No fundo, todos os seus textos abordam um tema apenas, insistem numa única preocupação, investigam somente a causa de uma coisa: Portugal. E constituem, como que a brincar, como se não o quisessem, uma das ensaísticas mais sérias e originais sobre o que somos.

É talvez útil, deste ponto de vista, avizinhá-la do contributo filosófico dado por Eduardo Lourenço. Lourenço investe na diagnose crítica do que ele chama a “imagologia portuguesa”, isto é, o conjunto de representações e de autorrepresentações que moldam o modo como enfrentamos os processos históricos enquanto povo, ao longo dos séculos e em particular na época moderna. Mas esta viagem pelos traumas, desfocagens e hipérboles que “por uma razão ou por outra alcançaram uma espécie de estatuto mítico” serve-lhe para dizer que chegou a hora de desmitologizar esse sistema de evasão e de nos vermos tais quais somos, “condição indispensável para que algum dia possamos conviver connosco mesmos com um mínimo de naturalidade”. E essa empresa de reconciliação passa por “uma conversão cultural de fundo suscetível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e fazemos”. É precisamente aqui que a obra de Miguel Esteves Cardoso se situa como um decisivo marco.

José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens in Expresso Semanário#2539, de 25 de junho de 2021


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