Os dias de Dante

 

Dante segura “A Divina Comédia”: de um lado está Florença e do outro uma visão do Inferno 
Santa Maria del Fiore | DAVID LEES/CORBIS/VCG VIA GETTY IMAGES




A AMPLITUDE DAS LEITURAS DE “A DIVINA COMÉDIA” DOCUMENTA A SUA CAPACIDADE DE APAIXONAR GERAÇÕES DE LEITORES




A

rrancou este setembro, entre nós, uma extraordinária “operação Dante Alighieri”, com uma exposição na Gulbenkian (onde dois espantosos desenhos de Botticelli são o centro magnético de uma proposta visual ampla e rara), um colóquio internacional com alguns dos dantistas mais importantes da cena contemporânea (Carlo Ossola à cabeça) e um ciclo de conferências que se estenderá até novembro (e será possível escutar Lucia Battaglia Ricci, Lina Bolzoni, Alberto Manguel, Teresa Bartolomei, António Feijó, Henrique Leitão, Isabel Almeida, Rita Marnoto, Arnaldo Espírito Santo, Rui Chafes, Paulo Pires do Vale, António Mega Ferreira, Jorge Vaz de Carvalho, entre outros). Se um clássico é uma obra cuja interpretação jamais se pode dizer concluída, “A Divina Comédia” é, com plena evidência histórica, um clássico dos clássicos, pois são inúmeras, contrastantes, e em certos casos inconciliáveis, as perspetivas hermenêuticas geradas, ao longo dos séculos. Como observou o poeta russo Osip Mandel’štam, que chegou a Dante em vertiginosa contramão, nos anos 30 do século passado, para com a sua ajuda sobreviver ao terror de Estaline, a grandeza deste poema inclassificável reside na tensão que o atravessa, que o torna uma espécie de luta livre entre registos, instâncias, linguagens. E Mandel’štam explicava que a palavra de Dante nos “desperta em sobressalto” para recordar que estamos sempre “em caminho” ou “a caminho”.

De facto, a amplitude das leituras da “Comédia” documenta a sua capacidade de apaixonar gerações de leitores. Há quem veja nela o relato da contrição de um pecador à procura de redenção (para si e, profeticamente, para o que o lê); e quem reconheça apenas o ajuste de contas de um banido político que não abdica da sua reabilitação diante do tribunal da história. Há quem defenda estarmos perante um eloquentíssimo encómio da mulher amada, uma aventura de amor oculta numa densa figuração teológica; e quem reconstrua no poema um reflexivo percurso místico, uma espécie de itinerarium mentis in Deum. Há os que privilegiam o artifício literário e retórico que tece conscientemente o pano da escrita; e os que leem “A Divina Comédia” como um fascinante trésor do conhecimento humano transformado em literatura: a Comédia seria uma enciclopédia religiosa, filosófica, política e científica do saber do século XIV, transfigurada em altíssima criação literária universal. Uma leitura não-crente verá nela uma etapa imprescindível do cânone ocidental e da autorrepresentação da cultura europeia. Os leitores cristãos, por seu lado, encontrarão no poema uma expressão artisticamente poderosa da própria fé, uma irremovível inscrição da verdade cristã na experiência do homem. Celebrar Dante pode ser muita coisa.

Porém, regressar a Dante será sempre superar os dualismos estereotipados, reconhecendo que natural e sobrenatural não são mundos alternativos, mas formas complementares de estar no mundo; que tempo e eternidade são duas condições do ser em busca de sentido; que o bem e o mal são opções em que o sujeito dramaticamente se define. Será redescobrir que a arte tem tudo a ver com a moral mesmo quando ambas pretendem desmentir qualquer relação, virando-se mutuamente as costas. Será constatar que a verdadeira espiritualidade não é indiferente à política, que a religião é uma força motriz da história, e a literatura é um lugar de autoconstrução da racionalidade. Regressar a Dante é, por fim, interrogarmo-nos sobre quem somos, reconhecendo que é nesta interrogação que o homem se torna quem é, não necessariamente através da produção de respostas e conclusões, mas em reais percursos de descoberta e novos começos.


José Tolentino Mendonça. E-Revista Expresso, Semanário#2552, de 24 de setembro de 2021


Comentários