A MEDIEVAL PRAGA DA DANÇA
OS SANTOS FORAM ENGOLIDOS POR UMA ANCESTRAL HISTERIA EM MASSA
Se por algum acaso ficcional tivesse tido oportunidade de mostrar, por esta altura, Lisboa numa volta noturna de tuk-tuk ao famoso pintor flamengo Pieter Bruegel (uma sorte, dado que morreu em 1569), tenho a certeza de que ele diria que a cidade estava assolada pela ‘praga da dança’, também conhecida no seu tempo por ‘tarantismo’ ou ‘doença de são Vito’ — mártir da Igreja que se celebra a 15 de junho e é o padroeiro da dança. Bruegel retratou várias situações da referida praga demoníaca. Bem lhe poderia dizer que não, que eram só as pessoas que estavam muito animadas por estarem a comemorar o santo António e outros santos juninos e que tinham estado trancadas devido à pandemia — pois, ainda não acabou essa praga e possivelmente estão a recontaminar-se — e que agora queriam era dançar sem parar horas seguidas ao som de ‘Bella Ciao’ ou ‘Bacalhau à Portuguesa’. E Bruegel far-me-ia o relato dos casos de ‘praga da dança’ que testemunhou e pintou, nomeadamente a grande crise de Estrasburgo de 1518 sobre a qual até fez um quadro (e vários esboços) em que se podem ver camponeses a segurarem mulheres para que estas não dancem, mas onde estão igualmente presentes um par de gaiteiros de foles meio assustados a tocar.
Desde o início da Idade Média até ao século XVII a ‘praga da dança’ foi uma cena. Pacatos aldeões começava a dançar incontrolavelmente durante semanas, alguns deles até à morte. Há vários casos registados pelo menos desde 1374, em Aix-la-Chapelle, passando pelo evento do sul de Itália, na Alta Idade Média, em que uma senhora disse ter sido picada por uma tarântula e começou a dançar convulsivamente no centro da cidade e de repente outros se juntaram a saltar, a abanar, a rodopiar, a ornamentar-se de cores dançando dias a fio e consumindo quantidades consideráveis de vinho. Uma rave party medieval.
Há histórias de pessoas terem morrido por não terem tido acesso a determinada música (estes relatos podem ser questionados) e a municipalidade mandou vir trovadores e músicos. Uns bateram-se de espada ou paus, atiraram-se para a lama e outras inanidades. Os casos de tarantismo sem picada proliferaram de tal forma que deram lugar a um tipo de música que subsiste até hoje na Itália: la tarantella.
O caso de Estrasburgo, em 1518, foi o mais documentado. Começou quando uma mulher, Frau Troffea, foi para o meio da rua e começou silenciosamente a remexer, a rodopiar e a abanar-se. Manteve a sua dança a solo por uma semana. Foi aí que três dezenas de cidadãos se juntaram. Em agosto eram 400. Os médicos garantiram ser “sangue quente”. Mandaram vir músicos e dançarinos profissionais para tentarem ver se remediavam, mas nada. Em setembro a ‘praga da dança’ começou a cobrar o seu preço: pessoas começaram a cair de exaustão, umas morreram, outras apenas colapsaram. Os sobreviventes foram para clausura pedir a absolvição. Mas muito se escreveu sobre o assunto. O que levou estas pessoas a isto? Historiadores tendem a explicar este tipo de fenómenos com dois fatores que mexem com a moleirinha: grande religiosidade e fome. Em Estrasburgo havia uma devoção a são Vito (que tinha o poder de enviar uma praga em forma de dança) e nesse ano vivia-se uma grande fome. Ingredientes possíveis para uma histeria em massa. Outros põem a hipótese de ingestão de “cravagens”, um fungo que infeta os cereais e produz espasmos e tem poderes alucinogénios.
Mas quem estuda os fenómenos de “histeria em massa” fala apenas em stresse acumulado nas comunidades devido aos desastres naturais do tempo, como pragas, fome, doenças, inundações, e descrevem a ‘praga da dança’ como uma forma de “stresse partilhado” — uma forma incontrolada e contagiosa de aliviar do peso da pobreza e dos medos do dia a dia em que para substituir a miséria do quotidiano eram prometidas as chamas eternas do inferno.
Quando hoje vemos a lista de fenómenos de “histeria coletiva” esquecemos quão diversos e absurdos podem ser. Basta ver a grande lista dos casos de histeria em massa. E que podem ir das Bruxas de Salem (em 1692, nos EUA, que levou à morte de dezenas de mulheres), ao Grande Medo (em 1789, o pânico infundado que espoletou a Revolução Francesa), ao nosso Milagre do Sol de Fátima (1917, independentemente de sermos crentes vamos talvez duvidar que o sol tenha efetivamente rodopiado). A epidemia de risos em Tanganica (1962), que “atacou” uma escola religiosa de meninas na Tanzânia e dias depois centenas de jovens da aldeia já estavam também a rir-se descontroladamente, durou 16 dias. E há o caso do nosso “vírus ‘Morangos com Açúcar’” (2006), em que 300 alunos de 14 escolas começaram a sentir os sintomas de uma personagem da série televisiva. Coisa já estudada pelos americanos.
Bruegel, o Velho, enquanto comia a sua sardinha com maionese e eu me ficava pela seitana (bifana de seitã), dir-me-ia que tudo aquilo era um prelúdio para um caos maior por vir. Sabia-o. Não tinha ele pintado exatamente “O Combate entre o Carnaval e a Quaresma”, essa luta entre o profano e o religioso e agora via seres com chapéus de cabeça de sardinha supostamente a honrar um santo casamenteiro? Por falar nisso, disse-me, sabe que no Brasil toda a gente diz que santo António é só o de Pádua e que ele é “o martelo dos hereges”? Agora, olhe à sua volta e pense. Pense. E pediu uma sardinha com ketchup.
Luís Pedro Nunes. O mito lógico - A medieval praga da dança, in Expresso Semanário#2590, de 17 de junho de 2022
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