O mundo pesa ao colo
Foto de Hugo David
“Deste Mundo e do Outro” é o encontro entre a dança de Olga Roriz e a escrita de José Saramago na Companhia Nacional de Bailado
TEXTO CLAUDIA GALHÓS
“Eesta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra, embora não registada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas?” É uma breve citação do início de “Levantado do Chão” (1980), e uma das muitas que Olga Roriz revisita no seu reencontro com a Companhia Nacional de Bailado (CNB), na coreografia “Deste Mundo e do Outro” (título do livro de crónicas editado em 1971), oito anos depois da sua última criação para a CNB, e agora no âmbito das comemorações do centenário do nascimento de José Saramago. Olga Roriz começou esta criação como começa todas as suas criações. Foi pesquisar, foi ler livros de Saramago, foi ler e ouvir entrevistas, foi ver documentários. Aos poucos, mergulhando no universo literário de Saramago, foi também descobrindo o homem e a visão deste sobre o mundo. É isso que depois transporta para a imaginação da linguagem do corpo em dança, um fluxo entre aparições breves de personagens de alguns livros, não faltam Blimunda e Baltasar (de “Memorial do Convento”, 1982), mas não se definem o suficiente para serem identificadas por quem as não conheça a fundo.
Com todo esse material, diz Olga Roriz ao Expresso, “deixo de ter a peça reduzida a uma obra, uma frase ou um tema e passa a ser a totalidade da visão daquele homem. Ao mesmo tempo abre imenso espaço, não reduz a uma história, não reduz a personagens. E abre a uma humanidade”. No caminho da pesquisa, nessa humanidade a que se abre, a coreógrafa repara no que tem em comum a sua dança com a escrita de Saramago. “De repente, começo a sentir pontes entre visões dele e peças minhas”, diz. “’Síndrome’ podia ser uma peça do Saramago. ‘Antes Que Matem os Elefantes’ também. Sinto proximidade com aqueles espetáculos que estão um bocadinho mais virados à sociedade, à guerra, da humanidade, da raiz da sobrevivência humana, da paixão também, da morte, da família, dos conflitos, dos contrários. Quando cheguei aí, retirei o peso do Saramago de cima e pensei, ‘vamos lá sentir esta gente, pensar esta gente, no português. Tudo isto tem muito que ver com o ‘Levantado do chão’, que é um dos meus livros preferidos. E daí, essa presença do passado.” Um passado que permanece presente. “Nós somos a herança de ‘Levantado do Chão’, não há dúvida. E continua, o racismo enraizado, o moralismo, mesmo a parte religiosa que pensamos que está muito longe... Parte tudo dali.” Com exceção de Gonçalo M. Tavares, Saramago é o escritor português que Olga Roriz mais leu. Nas breves narrativas em formato de crónicas de “Deste Mundo e do Outro”, publicadas originalmente no jornal “A Capital”, encontrou matéria fértil de inspiração. “Desde as situações familiares, da memória, às impressões mais oníricas, as paisagens distópicas. Um dos aspetos de que mais gosto do Saramago é o facto de ele trabalhar sobre o tempo passado, passa por cima de um presente e mergulha no futuro que há de vir. Sinto muito isso, algo que vai acontecer e que ele simbolicamente mete no presente, como em ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, ‘A Jangada de Pedra’ ou ‘A Intermitência da Morte’. Ele leva-nos para um sítio de um devir, de uma coisa que há de acontecer.”
Quando Olga começou a pensar coreograficamente, surgiu-lhe a imagem da caminhada. É essa a sua primeira visão para o corpo a partir da escrita de Saramago e é assim que o espetáculo começa. Uma caminhada sem-fim, com uma parede que abre para uma dimensão do onírico e, depois, ainda mais no fundo do palco, uma janela, como se estivéssemos numa viagem de comboio, por onde vão correndo paisagens, do rural alentejano ao urbano de Lisboa e a travessia da ponte sobre o rio Tejo. A imagem desse povo miudinho, com uma forte carga política, surge logo nesse primeiro longo caminhar, de quase dez minutos, de uma multidão entre o rastejar e de gatas, uns a seguir aos outros, a transportarem uma pessoa ao colo a desmaiar para o chão. O final traz uma outra imagem carregada politicamente, que também surgiu no início da criação. Mas o fim não se revela. Fica o peso desse começo nas palavras de Olga Roriz. “Parecem pessoas prenhas de outras pessoas, independentemente do sexo. É o carrego do outro, do ponto de vista do filho, do marido, do patrão, da humanidade. É mesmo um carrego, aquilo é pesado.” Ainda assim, atravessa toda a peça um sentimento de celebração. “São várias celebrações. Acontecesse o que acontecesse, ao longo da peça queria também que tivesse um tom de festa, no sentido do reencontro com estes bailarinos e utilizar e construir com estes bailarinos esta humanidade do Saramago.”
Expresso Semanário#2591, de 24 de junho de 2022
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