Ondina

 


SEM A FRESCURA DAS IMPRESSÕES, SERIA UMA COMUM ORIENTALISTA; SEM A EFABULAÇÃO CONVINCENTE, ESTARIA A CONTRABANDEAR CRÓNICAS POR FICÇÕES


O

uvi falar de Maria Ondina Braga (1922-2003) muito antes de a ter lido, do apuro e da discrição dela, elogiados pelo meu pai, que a conheceu e tinha vários livros dedicados. Li uns quantos contos, de que gostei, fiz depois algumas compras em alfarrabistas, mas só agora lhe prestei a atenção devida.

Comecei pelo terceiro e segundo títulos da bibliografia, a autobiografia romanceada “Estátua de Sal” (1969) e os contos de “A China Fica ao Lado” (1968). Toda a obra de Ondina parece proceder destes dois volumes: a dimensão vivida das coisas narradas e a estranheza não-estranha dessas coisas. “Estátua de Sal” é autobiografia porque trata de Braga e de Macau, e de outras paragens, europeias, asiáticas, africanas, da experiência como professora, de solidão e lucidez. E apresenta-se como “romanceada” porque junta aos factos da biografia a subjetividade, a interioridade, a imaginação, o não-acontecido. Já os contos de “A China Fica ao Lado”, ainda que ostensivamente dedicados aos outros, às figuras, crenças e costumes chineses, supõem sempre um “eu” que observa e comenta, ao de leve, um “eu” ténue, digamos, ténue mas seguro.



Maria Ondina Braga (1922-2003)




Em que medida é que a China fica “ao lado”? Talvez no sentido em que nos passa ao lado, porque mesmo quando se está geograficamente na China, como em Macau, se pode estar muitíssimo distante. Ou então é o contrário: não há verdadeira distância porque qualquer história “chinesa” é, antes de mais, uma história humana. Por isso uma das narradoras do livro se diz “estrangeira mas não estranha”. Admito que o suposto exotismo destas ficções seja um obstáculo para alguns leitores, mas não existe aqui exotismo nenhum, as imagens chinesas (barcaças, tufões, opiómanos, mulheres com os pés ligados, centenárias que parecem ter 1000 anos) são matéria empírica, observável, o contrário de qualquer estereótipo, de qualquer “orientalismo”.

Ondina trata com conhecimento e mestria os mais diversos temas: os fantasmas da ocupação japonesa (a história de um homem rico que arranja uma amante do Japão, para consternação de quem o rodeia); a convivência pacífica e um tudo-nada sincrética entre fés (a tocante história sobre o filho cristão que decide converter o pai budista, mas acaba a aceitar a possibilidade de “um deus de todos”); as personagens cabisbaixas, solitárias, alheadas (como “a doida”, que “não pode morrer porque verdadeiramente já morreu”). Nesta China orgulhosa e antiga, delicada e triste, diz-se das personagens, sobretudo das mulheres, que “nunca casou”, “nunca amou”, enviuvou, amou sem proveito, ou evoca-se, no caso do conto-título, história de um aborto clandestino, uma “legião ancestral das ofendidas”. Quando descreve as professorinhas de colégio ou de uma infeliz que coleciona espelhos, Ondina fala das mesmas colegas e amigas que conheceu em Braga, Inglaterra ou Angola. E em frases que tão anódinas como significativas (“Frisou o cabelo. Estava quase bonita”) dá mostras de um talento tchekhoviano (aqui concentrado naquele “quase”).

Numa recensão a um livro posterior, as novelas “Os Rostos de Jano” (1973), Urbano Tavares Rodrigues notou “a frescura das suas impressões, o dom da efabulação convincente, a carga sociológica que as suas histórias transportam, o poder de desmistificação, o protesto sem retórica”. É difícil dizer melhor. Sem a frescura das impressões, Ondina seria uma comum orientalista; sem a efabulação convincente, estaria a contrabandear crónicas por ficções; sem a sociologia, ou antes, a observação, escapavam-lhe os contextos, as ambiguidades, as subtilezas; sem protesto, abandonava a noção de justiça; e um excesso retórico seria desajustado à sua natureza. Mas podemos detetar outra característica, ou outro registo, que a aproxima de escritoras portugueses da sua geração, a maior das quais Maria Judite de Carvalho: aquilo a que tenho chamado “literatura da implosão”, um sofrimento para dentro que não é defeito, mas feitio. Veja-se o protagonista de um dos contos de “A China Fica ao Lado”, um ervanário de quem se diz que gastou a vida “a tentar curar carnes ulceradas, olhos baços de cegueira, nervos rasgados de convulsões, pestíferos, tolhidos, alucinados, histéricos, empecidos”, ou “a preparar tisanas, emplastros, cáusticos e elixires, a manipular unguentos”. Mas o ervanário falhou “miseravelmente”, escreve Ondina, e teve de recorrer “a soporíferos, a expedientes, a paliativos”, testemunha impotente “do desemparo das criaturas”.

Pedro Mexia. Expresso Semanário #2594, 15 de julho de 2022


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