Agustina por Agustina

 

#CentenárioAgustina

1922-2022














Agustina por Agustina. Eu não dou sossego a quem me ouve, não deixo que parem no dia santo, porque ponho pedra firme até na água e projecto na criança de mama, e pingo de azeite na porta perra, e juízo no louco que se faz desentendido e diz: «Isto não é comigo.»

Não sou vaidosa. Sou contente, sou feliz e agradecida dos meus dotes de coração, dos meus talentos, da luz dos meus olhos, da saúde física, do vigor moral. Bens momentâneos – bem o sei. Valores falíveis e facilmente dispersos no tempo. Mas é nesta alegria, nesta exaltação vital, que está o meu cântico à vida – humano e, contudo, esplêndido, divino e, contudo, humilde.

Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza.

Nunca me senti cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano. Nunca me senti marcada, em misteriosa contradição com o comum dos outros, nunca experimentei o sentimento de estar à parte, de estar isolada. Eu consigo participar da despreocupação dos momentos vividos, e posso revelá-los pela palavra, sem que eles se alterem e se intensifiquem pela observação.

A minha obra é portuguesa, constituída por sentimento e gente portugueses até à medula.

Tudo o que eu escrevo se destina a interessar as pessoas na sua própria entidade. Daí, muitas vezes, ela ter um efeito devastador, a obra e a pessoa que a produz. Sobretudo a pessoa, devo dizer. Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade.

Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma direta via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa.

Não quero como assunto nada de extravagante, mesmo com timbre de lírico. Não quero brilhar, nem convencer, coisa que os poetas querem muitas vezes. Quero ser sóbria de palavras, constante de gratidão, verídica de fidelidade para quem confia em mim.

Para mim é fácil ser verdadeira quanto à minha insinceridade.

Agustina Bessa-Luís. Dicionário Imperfeito. Lisboa: Guimarães Edidores, 2008, pp. 14-15

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