Aniki Bóbó

 

Fotograma do filme "Aniki Bobó"






TALVEZ AQUI MANOEL DE OLIVEIRA AINDA SE SENTISSE PERANTE O CINEMA COMO DIANTE DE QUALQUER COISA DE EPÍFANO E INACESSÍVEL. UMA COISA CUJA APROXIMAÇÃO NÃO SE CUMPRIRIA SEM DISPUTA


A

primeira infância retratada em “Aniki Bóbó” é, antes de tudo, a do seu realizador. Trata-se da primeira longa-metragem de ficção de Manoel de Oliveira. O filme estreou-se a 18 de dezembro de 1942, no Cinema Éden, em Lisboa, mas havia sido rodado dois anos antes no Porto e em Gaia. Oliveira tinha, então, pouco mais de 30 anos. No genérico do filme ainda aparece, por exemplo, o seu nome escrito como Manuel. Era, a muitos títulos, uma estação embrionária, aquela. Podemos imaginar que o candor que transparece na rivalidade de Carlitos e Eduardo pelo sorriso de Teresinha espelhe, de certa maneira, a relação (ou o desejo de relação) de Oliveira com o cinema: também no caso dele um amor decisivo camuflado ainda de namorico, uma aventura que se diria naquele momento mais pueril que perturbadora, mais mágica que complexa e definitiva, como depois aos olhos de todos se tornaria claro. Talvez como Carlitos, caminhando de madrugada sobre os instáveis telhados, ele ainda se sentisse perante o cinema como diante de qualquer coisa de epífano e inacessível. Uma coisa cuja aproximação não se cumpriria sem disputa. Mas temos de reconhecer que não estamos simplesmente em presença de um daqueles esboços indecifráveis de juventude. Em “Aniki Bóbó” o cinema de Oliveira que conheceríamos depois — esse cinema que insiste em transmitir “uma visão da vida” — é já completamente manifesto. Sublinharia três aspetos.

O primeiro é a relação do seu cinema com a palavra e a literatura, intersecção que se tornaria tão arquitetural no trabalho futuro. Oliveira parte aqui do conto “Os Meninos Milionários” de João Rodrigues de Freitas (1908-1974), publicado em duas partes na revista presença (nºs 28 e 44), onde o realizador também colaborava. É curioso que nos créditos iniciais de “Aniki Bóbó” não se fale de um conto, mas de um poema de Rodrigues de Freitas. De facto, Manoel de Oliveira viu bem: mais do que um conto, aquele texto possui a intensidade, o balanço e os intervalos de fluorescência próprios da poesia. Como se lê no conto, as bocas dos personagens “lembram bocas paradas de esculturas” e “as suas caras de oiro, à luz do gás, parecem caras desconhecidas”: “a flor negra da noite vai [poder] abrir”. Oliveira interpreta como poucos cineastas a natureza da obra literária e como ela pode inspirar o cinema. Nunca se trata de uma transposição direta, mas de uma operação seminal, de um intrincado plano de propagação, onde as modificações devem ser vistas como condição de fidelidade.

O segundo aspeto é a evidência de que ao autor de “Aniki Bóbó” interessa o cinema como horizonte de reflexão moral. A história de base pode ser escarna, quase esquemática, como acontece neste caso. A intervenção de Oliveira é sempre, porém, na mesma direção: ligar a petite histoire do indivíduo à grande história da Humanidade. Nesse sentido, “Aniki Bóbó” não é o enredo ingénuo que à primeira vista parece: é um ensaio sobre a consciência e a sua dramática maturação; é uma reflexão de tonalidade bíblica sobre a culpa e o resgate; é uma meditação sobre os limites do arbítrio e o milagre da Graça. “Aniki Bóbó” transforma as margens do Douro numa espécie de Jardim do Éden, onde o bem e o mal se confrontam não como uma batalha exterior ou sociológica, mas como um drama metafísico.

E isso faz-nos enunciar o terceiro e último aspeto: o desejo de um cinema comprometido com o pensamento do destino humano. Muito se discorreu já sobre o lapso de André Bazin que coloca este filme como precursor do neorrealismo italiano. De facto, o percurso de Oliveira alinha-se numa margem diferente: ele concebe a existência como uma “loja das tentações” e o cinema serve-lhe para aprofundar a infinita perplexidade com que nos tornamos conscientes de nós mesmos.

José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens. Expresso, Semanário#2615, 9 de dezembro de 2022

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