IN MEMORIAM | MEGA FERREIRA

 
Foto de João Lima / Expresso

















Do António Mega Ferreira só tenho boas memórias. Um dia hão-de escrever-se livros sobre ele, mas, por enquanto, sabe bem lembrá-lo, tal qual ele foi, para cada um de nós.

O Mega foi um director magnífico. Apanhei-o no Jornal de Letras, onde ele estava entre pares, feliz, acompanhado, a trabalhar os entusiasmos dos outros tanto como trabalhava os próprios.

O Mega era um grande leitor, tão grande que, quando chegava a altura de escrever, deixava-se inibir pelos maiores, como Borges. Uma coisa é dizer “Nunca hei-de escrever como Jorge Luis Borges” e escrever na mesma, alegremente. Mas outra é dizer que “Nunca hei-de escrever como Jorge Luis Borges” e ficar, tristemente, sem vontade nenhuma de escrever.

O Mega lia tudo. É um crime que só gostasse de falar com quem também tivesse lido os mesmos livros, as mesmas revistas, os mesmos jornais? Quem é que não gosta de falar do que acabou de ler?

O Mega escrevia muito bem, mas tinha sempre presente que havia quem escrevesse melhor. O corolário deste reconhecimento era ser impiedoso para quem não escrevesse tão bem como ele.

O Mega era um entusiasta e um cúmplice: puxava mais pelos outros do que puxava por ele. Era hilariante e impetuoso, cultivando a ironia da única maneira que a ironia aceita: vivendo-a.

Era generoso, inteligentíssimo, desconcertante, vaidoso, sonhador, dramático, espectacular. Lembro-me da alegria dele, há 40 anos, quando descobriu, num jornal francês, a propósito de um concerto de David Bowie, que ele “se dava em espectáculo”.

Era o que o Mega fazia: dava-se em espectáculo.

Era um sedutor latino, mais português (e mais lisboeta) por isso. E, por isso mesmo, mais apaixonado pelo mundo, e por tudo o que o mundo tem para dar, do cérebro aos olhos, e dos olhos às pontas dos pés.

É mais fácil dizer as coisas de que não gostava: não gostava da mediania, da mediocridade, e do tédio das baixas expectativas e das falsas conquistas.

Fez muita coisa.

E vai fazer muita falta.

Miguel Esteves Cardoso. Jornal Público, 26 dedezembro 2022. 



















Roteiro afetivo de palavras perdidas é um pequeno dicionário, ordenado alfabeticamente, de palavras que o escritor foi registando para as não esquecer, não enquanto “exercício lexicográfico”, filológico ou etimológico, mas como “álbum de memórias vazadas em palavras cujo eclipse parcial" lhe "apetecia resgatar pela evocação”.

O leitor encontra termos como ‘acanhamento’, “uma certa reserva social, uma timidez incapacitante”, ou ‘cacharolete’, que Mega Ferreira encontrou no cabeçalho de uma secção regular da revista “Cara Alegre”, na qual se recolhiam chistes e anedotas diversas em linguagem pouco mais que telegráfica, e que significava “misturada, salgalhada”. O ‘esférico’ remonta ao dia em que fez três anos e alguém lhe deu uma bola colorida, que ele foi chutar “com fervor contra os muros do quintal onde a objetiva de um fotógrafo de bairro captou" a sua "pose satisfeita, naquele dia de primavera de 1952”. Judiarias, pecado, telefonia, estafermo, vate, soalheiro, infernizar, desaustinado, bandidos, galheta, geringonça, cartapácio são outras das palavras que aparecem.

Luciana Leiderfarb. Expresso, 26 de dezembro de 2022



Comentários