Sugestão de leitura | O tamanho do mundo, de A. Lobo Antunes

 

Foto de Tiago Miranda












Aos 80 anos, António Lobo Antunes continua a escrever romances ao mesmo ritmo de sempre. Terça-feira lança o seu 32º, “O Tamanho do Mundo”, que o Expresso já leu

TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA

E

m 1972, Henry Miller, o autor de livros tão importantes como “Trópico de Capricórnio” e a trilogia “Rosa-Crucificação” (“Sexus”, “Plexus” e “Nexus”), publicou numa editora minúscula, e com uma tiragem de apenas 200 exemplares, um livrinho de 34 páginas intitulado “On Turning Eighty” (“Sobre Chegar aos 80 Anos”). Entre várias reflexões sobre a bênção que representa chegar a tão vetusta idade ainda ativo, ainda física e intelectualmente capaz, o escritor nova-iorquino escreveu o seguinte: “Com a idade avançada, os meus ideais, que normalmente nego possuir, alteraram-se definitivamente. O meu ideal é ficar livre de ideais, livre de princípios, livre de ‘ismos’ e ideologias. Quero enfrentar o oceano da vida como um peixe enfrenta o mar. Quando era novo, preocupava-me muitíssimo com o estado do mundo, mas hoje, embora ainda barafuste e me indigne, contento-me simplesmente em deplorar o estado das coisas. Dizer isto pode soar a presunção, mas na verdade significa que me tornei mais humilde, mais consciente das minhas próprias limitações e das limitações dos meus semelhantes. Já não tento converter as pessoas à minha visão das coisas, nem procuro curá-las.”

No passado dia 1 de setembro, também António Lobo Antunes se tornou octogenário — e não é difícil imaginá-lo a subscrever as palavras de Miller. Há muito que o autor de “Fado Alexandrino” e “Tratado das Paixões da Alma” parece fechado numa cápsula que o isola do mundo à sua volta, um casulo onde tece incansavelmente a sua prosa narrativa, essa conversa de si para si mesmo, por vezes tão fechada e virada para dentro que quase se assemelha a uma forma de autismo, com as suas insistências e réplicas, ecos e repetições, sempre na mesma toada, que é, no fim de contas, a sua voz única, depurada ao fim de mais de quatro décadas de atividade literária e mais de três dezenas de romances, uma voz que por vezes se torna monocórdica, até monótona, mas logo se incendeia e reinventa, uma voz que continua a ser, provavelmente, a mais poderosa da literatura portuguesa.

Aos 80 anos, Lobo Antunes, apesar das cíclicas ameaças de que o próximo livro será o último (nunca é), continua a publicar romances a um ritmo quase anual, porque não sabe fazer outra coisa. O velho lugar-comum da escrita como respiração parece, no seu caso, uma evidência. E talvez o sonho do Nobel também o empurre, mesmo que não o admita, sendo a espera anual pelo telefonema de Estocolmo um aguilhão. Lembremos que, na semana passada, Annie Ernaux, a escritora francesa de 82 anos (feitos, também, a 1 de setembro), foi galardoada com o maior dos prémios literários, num momento em que ainda está bastante ativa — em maio lançou a sua última obra, “Le Jeune Homme”. Com Nobel ou sem Nobel, Lobo Antunes continuará a escrever. E talvez ainda seja capaz de nos surpreender, quando se calhar já não o esperaríamos.

Veja-se o novíssimo romance, “O Tamanho do Mundo”, que chegará às livrarias no dia 18. Nos romances da última década assistimos a um fechamento gradual das narrativas de Lobo Antunes, tão intrincadamente embrenhadas na sua lógica polifónica que muitas vezes deixavam o leitor de fora, a olhar hipnotizado, mas à margem, para uma maquinaria trepidante de cenas e tempos cruzados e monólogos e consciências em roda livre, tão avassaladora quanto opaca. Neste romance, pelo contrário, a escrita parece escancarar as janelas. É um livro mais curto (não chega a 300 páginas), mais linear, mais transparente. E menos complexo, menos labiríntico, menos barroco. 

Ao contrário dos seus dois últimos projetos ficcionais, António Lobo Antunes não aborda uma figura real nem um determinado acontecimento histórico. Em “A Outra Margem do Mar” (2019), o núcleo de onde irradiam as histórias está na apelidada “revolta do algodão”, liderada por António Mariano, um rebelde apoiado pelos congoleses, na Baixa do Cassange (Norte de Angola), em 1961; um conjunto de massacres que precipitaram o início da Guerra Colonial. Em “Dicionário da Linguagem das Flores” (2020), o romance, no seu afã de espreitar os meandros da luta antifascista, a atmosfera podre do salazarismo e a decadência de uma herdade familiar, tem o seu centro ocupado por uma ausência: a de Júlio Fogaça, líder do PCP que foi expulso do partido e apagado da sua história, em circunstâncias misteriosas (mas em que a sua homossexualidade terá desempenhado um papel importante).

A trama de “O Tamanho do Mundo”, pelo contrário, é puramente ficcional e tipicamente ‘loboantuniana’. Temos quatro narradores, cada um deles tomando a palavra à vez. O primeiro é um homem de 77 anos, grande empresário, doente e preso nos jogos da memória (essa “coisa estranha”), obcecado com um lugar onde retroativamente descobre ter sido feliz: uma cave num bairro pobre de Lisboa, onde vivia a sua amante e a sua filha, junto a um “jardinzeco” com um baloiço. A segunda é essa filha, que singra na empresa do pai e lhe sucede como administradora, embora ainda traga consigo, inscritas na pele, as marcas da miséria em que viveu na infância. Há ainda duas figuras laterais que ameaçam a transferência de poder em curso: uma rapariga que consola sexualmente o velho, alegrando-lhe os anos finais, sempre de olhos na sua fortuna; mais o advogado, e amante dela, que mexe os cordelinhos jurídicos para alterar a herança.

Desta vez não há confusões quanto a quem diz o quê, ou em que tempo, mas o leitor não deve esperar o desenrolar típico das histórias em que “a marquesa saiu às cinco horas”, para usar a célebre formulação de Paul Valéry. A matéria do romance não é a história que vai contando, nem é a sucessão de factos ou o destino das personagens. A matéria do romance são as personagens propriamente ditas, a forma como se constroem e desconstroem à nossa frente, e a linguagem, esse modo de fixar e nomear a realidade para lá da sua mera evidência, um trabalho de escavação e garimpo. O fruto do garimpo é esse momento em que se atinge, às vezes após sucessivas tentativas e iterações, a expressão justa de uma ideia.

Atente-se, por exemplo, na abordagem feita por Lobo Antunes à solidão extrema do velho empresário. Começa logo no primeiro parágrafo, quando nos é dito que a solidão se mede “pelos estalos dos móveis à noite”, mas também pelos objetos que “aumentam nos naperons”. Ao longo do livro surgem outras definições: “a solidão é um cano que vibra no interior da parede, o protesto daquela tábua no soalho que se indigna se a piso, uma mancha de humidade, só ilhazinha por enquanto, a nascer na caliça”; “a solidão mede-se pelo pânico das ambulâncias na rua, desenrolando espirais fosforescentes e gritos”; etc. É como se o romance procurasse, às apalpadelas, a melhor maneira de dizer algo. Ou procurasse, como sugere uma personagem, uma forma de estar mais atento “à linguagem do mundo”. 

Algumas das técnicas habituais do autor estão presentes — as frases que se sobrepõem e misturam, as interrupções, os ritornelos e leitmotivs —, mas sem excessivo peso, quase como uma marca de água, um elo a estabelecer a ligação com os livros anteriores, a lembrar-nos que estamos, afinal, num livro de Lobo Antunes. E, como em todos os livros de Lobo Antunes, há puros achados: o “relógio acolá a tricotar minutos graças às agulhas dos ponteiros”, a infinita “maldade dos objetos aparentemente inanimados”, uma “gaivota de asas de cartolina”, coisas minúsculas em que ninguém repara mas que podem provocar “uma mistura de pavor e alegria”. 

Uma das imagens recorrentes de “O Tamanho do Mundo” é a indeterminação das feições humanas (“embrulhadas em si mesmas, procurando o seu lugar em mim conforme procuramos, de bilhete na mão, a cadeira que nos cabe no cinema”), o nariz que o pai arranca à filha a fingir, os olhos e a boca e as sobrancelhas que se reorganizam no rosto ao acordar, depois do caos da noite, talvez uma procura do lugar justo que equivale ao que acontece aos elementos que compõem o romance, esse ser de palavras que, em breves lampejos, parece autoconsciente, “deixemos esta conversa assim, para quê insistir, daqui a pouco este livro termina e claro que se esquecem de nós, ficamos lá para trás a evaporar-nos na memória deles”. Deles. De nós, leitores. 

José Mário Silva. A polifonia da solidão, Expresso Semanário#2607, de 14 de outubro de 2022


António Lobo Antunes. Dom Quixote
outubro 2022. Nº de Páginas: 288
















SINOPSE DA EDITORA

Por entre os estalos dos móveis da sua casa em Lisboa, um idoso observa o outro lado do Tejo enquanto se perde nas memórias sobre uma cave e um pequeno jardim com um baloiço.

Independentemente de ter acabado por se tornar presidente de uma grande empresa, o sucesso jamais debelou a perda daquele tempo, acorrendo repetidas vezes ao local e imaginando que as pequenas coisas e as personagens (mais significativas, como a filha, ou mais casuais, como uma senhora que passa com um carrinho das compras) se mantêm intactas, tal qual um tempo impoluto.


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