Botox, distopia botóxica e as palavras mansas

 






O ROSTO QUE PARECE CADA VEZ MAIS NOVO ENTENDE CADA VEZ MENOS

“E

ste país progride, sem dúvida!”, escuta-se por aí.

1.

A decência da linguagem e a forma prudente (ou mentirosa, sob certos pontos de vista) como se fala dos outros ou dos acontecimentos foi descrita uma vez como essa arte do verbo em que um diz ao outro “que tem uma mente aberta” quando afinal o que ele tem é “um buraco na cabeça”, eventualmente provocado por uma bala certeira.

Esse modo de dizer sempre o melhor possível diante do terrível, arte da retórica benigna, é uma arte que vem, talvez, dos primórdios da civilização, dos coveiros ou das profissões que, perto da morte, aparecem imediatamente antes (o padre que celebra o ultimíssimo sacramento ou o médico que diz para os familiares do doente “vamos ver”, quando sabe perfeitamente que “já não há nada a fazer”). Essa arte de dar a melhor notícia possível diante do mais terrível acontecimento individual terá passado, então, destas profissões limite para a central profissão do político, aquele que deveria gerir os meios e não tanto o fim.

Portanto, já não se trata, na retórica política, de gerir o fim — o apocalipse geral ou individual —, trata-se, sim, de trazer essas palavras mansas para o meio da vida doméstica e de com elas descrever falsamente o terrível.

De um país, como um todo, também se vai dizendo — quando o buraco na cabeça é evidente — que o país não está todo esburacado, mas, sim, que é uma mente muitíssimo aberta para o mundo.

2.

Uma investigação recente mostra que “o impacto das injecções de botox na testa” pode “modificar a forma como o cérebro interpreta e processa as emoções das outras pessoas”.

Segundo parece, ocorrem, com as injecções do botox, “disrupções na resposta neuromuscular”. A tese é simples, e o artigo recente explica com detalhe: “Quando vemos uma expressão zangada ou feliz no rosto de outra pessoa, estendemos ou contraímos os músculos do nosso próprio rosto a fim de reproduzirmos a expressão.” A nossa testa, e todos os muitos músculos do rosto, reproduzem o que os nossos olhos vêem na pessoa que está à nossa frente, e este “é um processo que decorre de forma inconsciente”.

Segundo o artigo, os músculos faciais, ao imitarem, em modo de puro espelho involuntário, a tensão do rosto de quem está à nossa frente, enviam para o cérebro essa informação, e daí nasce a compreensão do estado afectivo do outro.

E daí, claro, nasce depois, também, a empatia.

3.

A notícia diz que uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia utilizou “injecções de botox num grupo de 10 participantes do sexo feminino com idades compreendidas entre os 33 e os 40 anos”, e essa injecção provocou “uma paralisia temporária no músculo glabelar (responsável pelo franzir do rosto)”.

Mais tarde, os cientistas “mediram a actividade cerebral”, através de sessões de ressonância magnética funcional, enquanto estas pessoas, injectadas com botox, observavam fotografias de rostos felizes, tristes ou neutros.

Segundo o artigo, os dados da investigação tornaram claro que a “actividade na amígdala” e no giro fusiforme, “parte do córtex temporal inferior que ajuda no reconhecimento do objecto e do rosto”, havia mudado — estes sistemas humanos haviam perdido precisão e capacidade de entendimento após a injecção. Concluíram assim que o botox injectado na cara, ao paralisar “os músculos da face”, inibe a “forma como o cérebro processa os rostos emocionais”.

Lembre-se que o botox era originalmente usado para doenças como “espasmos musculares”, porque é “capaz de impedir a contração muscular e actua promovendo a paralisia temporária do músculo”.

A tese, segundo o artigo, tem por base as ideias de Darwin, que assumiu que há “uma ligação entre a memória muscular do rosto e o processamento das emoções no cérebro”; havendo, portanto, ligação entre a pele — o mais superficial — e as emoções — aquilo que aparentemente está mais no fundo-fundo do corpo humano (e já Paul Valéry dizia que “a pele é o mais profundo”, etc.).

4.

Com o botox a generalizar-se, estaremos, pois, diante do fim da empatia ou então, pelo menos, diante da redução drástica dessa capacidade humana de entender o que o outro está a sentir. E estaremos também, segundo o estudo, diante da dificuldade de exprimir, em si próprio, as emoções — não no exterior, mas no próprio organismo interno.

(Lembro-me bem do refrão de uma música brasileira, cantada por Arnaldo Antunes, entre outros, ‘Socorro, Não Estou Sentindo Nada’: “Socorro, não estou sentindo nada,/ Nem medo, nem calor, nem fogo,/ Não vai dar mais pra chorar/ Nem pra rir.”)

5.

O rosto que parece cada vez mais novo entende cada vez menos.

Socorro, não percebo o rosto que está à minha frente! — como se um outro rosto humano fosse uma língua num alfabeto que desconheço.

Eis, a disseminar-se a grande velocidade, uma distopia botóxica: os velhos rostos são agora falsos rostos jovens, mas com os músculos faciais reduzidos a um estacionamento eterno; músculos paradíssimos e burros que de tão belos e parados nada sentem e nada entendem.

6.

E sim, claro, há uma relação possível entre o botox atirado para o rosto que não quer envelhecer e as belas palavras de retórica atiradas para cima dos acontecimentos mais desagradáveis.

À superfície, as palavras dos políticos que julgam amansar, com a sua mansidão, a realidade tumultuosa são modos de paralisar a própria face e de nada entender do mundo. E, com o tempo, provocam também uma avaria irresolúvel na capacidade política de empatia com a população.

A retórica política, que embeleza e rejuvenesce falsamente o que está velho e podre, é um botox verbal que parece apenas superficial, mas destrói evidentemente o cérebro emocional da política e dos políticos.

Socorro, não entendo nada; socorro, não sinto nada.

Expresso Revista, Semanário#2631, de 31 de março de 2023. Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Comentários