Sugestão de leitura | Dor fantasma, de Rafael Gallo

 


O escritor brasileiro Rafael Gallo venceu o Prémio José Saramago 2022 com um romance poderoso sobre a queda de um pianista intratável e obcecado com a perfeição

TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA

N

a primeira frase deste belíssimo romance, Rômulo Castelo pousa as mãos num piano de concerto. Os seus dedos deslizam sobre as teclas como “potentes cavalos-marinhos de volta à água aonde pertencem”. O seu lugar é ali, debruçado sobre o instrumento que lhe ocupa a vida quase inteira, arrancando da partitura o genial fogo-de-artifício sonoro de Franz Liszt, seu ídolo. Mas aquelas mãos às vezes também se assemelham a escorpiões, prontos a picar quem deles se aproxima. A procura da beleza e o veneno. A obsessão com a pauta — esse código que transforma “milhares de alvos circulares” no milagre que é a música — e a indiferença, ou o desprezo (mais tarde a raiva), por tudo o que fica para lá dela. Eis as fronteiras do mundo limitado em que se move o protagonista de “Dor Fantasma”.

A poucas semanas de iniciar uma tournée na Europa, que o consagrará como um dos maiores intérpretes de Liszt, Rômulo prepara em segredo uma “grande surpresa”, o mais estrepitoso dos encores: o “Rondeau Fantastique” do compositor húngaro, durante muito tempo considerado “intocável”, por causa da absurda exigência técnica e da dificuldade de respeitar uma cadência de 120 batidas por minuto. Ao longo dos anos, Rômulo trabalhou obsessivamente a peça, numa “imensa soma de vésperas”, até atingir a mais absoluta perfeição, esse ideal que o pai — respeitado maestro — lhe transmitiu desde criança, junto com o culto da disciplina. “Cada gesto, cada detalhe, exatamente como deve ser; em tudo, somente o que é certo. Nenhum equívoco, nada a ser indultado. O zelo exige rigor.”

No seu caso, a disciplina integra-se na própria existência quotidiana. Todos os dias, acorda às 6h40 e fecha-se pouco depois na sua sala de estudo, de onde só sai para dar aulas de piano na universidade. Aquela sala é uma espécie de bunker no meio da casa, com uma enorme porta de metal, oito metros quadrados de espaço absolutamente estanque e isolamento acústico total. “A sala de estudos: caixa-forte entranhada na alvenaria do lar, arquitetura da impenetrabilidade.” É ali que ele fica a sós, sentado diante do Steinway, em frente a uma réplica do retrato de Liszt pintado por Henri Lehmann, em 1839.

Do lado de fora ficam os outros círculos da vida, o vasto mundo das obrigações sociais que o afastam, sempre para seu grande pesar, do teclado e do tiquetaque do metrónomo. O primeiro círculo é o do próprio lar, onde a relação tensa com Marisa prenuncia claramente um divórcio, desenlace talvez inevitável para uma situação de paz podre, e a presença do filho Franz, rapazinho com deficiência mental, não acende nele o mínimo resquício de humanidade, ou de amor paternal, só indiferença e uma espécie de asco diante do que considera um castigo, uma negação de tudo o que poderia ter idealizado para a sua descendência. Outros círculos são ocupados pelo pai, internado numa casa de repouso; os outros professores da escola, de quem é incapaz de se tornar amigo; uma ex-namorada, com quem troca mensagens de vez em quando; e uma aluna com perfil de stalker, ignorada olimpicamente.

Na verdade, as interações com estes círculos só confirmam a ideia com que ficamos desde as primeiras páginas. Rômulo Castelo não é apenas um homem esquivo, brusco, bruto, rígido, autocentrado e intratável. Ele é um ser antissocial, um homem que virou costas ao mundo contemporâneo e não faz o mínimo esforço para o entender. Quando alguém lhe mostra vídeos em sucessão num telemóvel, Rômulo fica a pensar no paradoxo de uma avalanche de informação que “invade, contínua, a vida das pessoas, mas se dissolve à mesma medida”. O acesso imediato a tudo não o fascina, assusta-o. Receia uma realidade que se apresenta simultaneamente como ilimitada e espectral, sem hierarquia nem separações claras entre o que é factual e o que é ilusório. “Depois da chamada modernidade líquida, parecemos adentrar a pós-modernidade gasosa. Constante evaporação. Nada permanece, nada nos desloca de verdade; o fluxo sequer causa impacto, não tem peso.” Homem que parece saído de outro tempo, o émulo de Liszt é incapaz de lidar com o presente. A meio de uma conversa, o professor de composição diz-lhe: “É o século XXI, Rômulo, não é um abismo.” Ao que ele responde, muito sério: “Às vezes tenho dúvidas se há mesmo muita diferença.”

Ainda cedo na narrativa, por volta da página 70, acontece a disrupção, a cesura. Num acidente estúpido, o pianista é atropelado por uma moto e perde a mão direita. Todos os sonhos de grandeza se esfumam e com eles os alicerces que sustinham Rômulo. Três quartos do romance são então dedicados à análise, extremamente minuciosa, da forma como o protagonista reage a esta perda. Havia, claro, o risco de o livro cair nas armadilhas de um retrato psicológico demasiado exaustivo. Ou previsível. Ou moralista. Mas Rafael Gallo escapa a esses alçapões com perícia e donaire. Os contratempos vão-se sucedendo, o mundo moderno que o pianista tanto despreza monta-lhe finalmente o cerco (sujeitando-o à fúria das redes sociais e a um exemplo clássico da chamada ‘cultura de cancelamento’), tudo se desmorona até não sobrar pedra sobre pedra, mas Rômulo nunca deixa de ser Rômulo. Em dois ou três momentos há indícios de que acabará por vergar-se de alguma maneira, abdicar da sua intransigência, sujeitar-se à ordem das coisas que o esmagou, mas Rafael Gallo tem a decência de o poupar a isso, mesmo depois de ter esticado a corda até ao limite. Com o seu desfecho inesperado e cru, a cena do concerto de homenagem, em que o pianista dá por si ao lado do filho, a estropiar a melodia do ‘Hino à Alegria’, de Beethoven, é a esse título de uma eficácia exemplar. Tal como, de resto, a extraordinariamente intensa cena final do livro, ao mesmo tempo precisa e concisa.

Lorena, a ex-namorada, aproxima-se do cerne do que está aqui em causa quando diz, a propósito de uma perda pessoal: “O luto nunca chega a um fechamento. (...) É igual quando uma ferida cicatriza; para mim, a cicatriz ainda é uma forma de a ferida se mostrar.” Todo o livro se constrói em torno desta ideia. No que faz, no que diz, no que pensa, no que omite, Rômulo Castelo surge-nos como uma ferida que se recusa a cicatrizar. Há nisto um lado trágico, depressivo, por vezes malsão. Mas também há dignidade e uma certa coragem, além de muita melancolia.

O zelo e rigor que Rômulo coloca no estudo de Liszt é o que Rafael Gallo aplica à estrutura cuidada da sua narrativa, à feitura muito polida da sua prosa. Aliás, não é difícil imaginar o romancista diante do computador, os dedos sobre o teclado (mas este só com teclas brancas), ouvindo a “pulsação inabalável” de um imaginário metrónomo — esse objeto que “fabrica seu próprio tempo para além das horas”.

Expresso Revista, Semanário#2631, de 31 de março de 2023











DOR FANTASMA
Rafael Gallo
Porto Editora, 2023, 278 págs



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