A máquina "Sapiens", o "Homo" gentil

 





A IDEIA DE UMA FORTE PRODUÇÃO CULTURAL E ARTÍSTICA, PELAS MÁQUINAS-AUTORES, NÃO É NOVA, MAS A SUA AUTONOMIA COMEÇA A SER JÁ ABSOLUTAMENTE ASSOMBROSA


O

perigo da inteligência artificial, claro. Mas também o perigo da falta de inteligência natural e da humana em particular.

Dois perigos: um novo; o outro bem antigo.

1.

E claro que a falta de inteligência humana juntamente com a eterna avidez do Homo sapiens poderão produzir uma terrível explosão por via da inteligência artificial.

O que é, no fundo, verdadeiramente perigoso? Uma forte inteligência artificial nas mãos de uma fraquinha inteligência humana ou uma forte inteligência artificial nas mãos de uma forte inteligência humana mas mal-intencionada.

Isto é, em síntese: não há escapatória. Estamos feitos.

Sendo assim, não há dúvida: a inteligência artificial produzirá vários desastres — talvez não o desastre último, o Apocalipse, mas desastres políticos, económicos, sociais, etc. —, a questão é quando e onde?

Há pessoas já a olhar para o relógio e outras já a olhar em todas as direções. Onde e quando aparecerá o primeiro desastre provocado com o contributo da inteligência artificial? Na Bolsa de Nova Iorque? Nos computadores que controlam algumas centrais atómicas? Nas próximas eleições daquele outro país?

Já não há se. Há onde e quando. Mas, apesar de tudo, o Apocalipse não chegará por essa via. Se o Apocalipse aparecer será sempre de surpresa, nunca programado nem anunciado. Eis uma fé.

2.

A ideia de uma forte produção cultural e artística, pelas máquinas-autores, não é nova, mas a autonomia das máquinas nessa produção começa a ser já absolutamente assombrosa.

Duas Histórias, portanto, estarão em breve em movimento: a História produzida pelos humanos (os documentos, as ideias, as obras produzidas pelos humanos) e os documentos, imagens, ideias, obras artísticas, etc. produzidos pelas máquinas.

Daqui a décadas não se falará da História dos humanos, mas das duas Histórias: a que resulta dos actos humanos, numa mistura com o que a Natureza vai fazendo, e a História que resulta do que é produzido pela inteligência artificial.

E há depois a questão da velocidade. Que não é pormenor.

Tal como nos cálculos matemáticos, isso é há muito evidente — as máquinas são bem mais rápidas — também em todas as outras produções, quaisquer que elas sejam, não há dúvida: as máquinas produzem muito mais e bem mais rápido. Em poucos anos, a inteligência artificial, por autonomia própria ou apenas com o impulso de umas palavras introduzidas por um dedinho humano, produzirá mais relatórios, mais teses de doutoramento, mais poemas, mais fotografias e mais filmes num ano do que todos os humanos juntos desde o início dos tempos.

A inteligência artificial poderá, em breve, produzir mais filmes num dia do que todos os filmes produzidos e realizados por humanos ao longo de um século. É isso mesmo. Em termos de quantidade e velocidade não há qualquer dúvida: será um absoluto esmagamento da produção intelectual humana.

A única questão será a da qualidade, eventualmente, e a da individualidade. Mas, em pouco tempo, as melhorias na qualidade serão surpreendentes, pois, tal como a produzir, a inteligência artificial é também infinitamente mais rápida a aprender. E aí está o perigo e o desastre anunciado. Que uma fotocopiadora tire biliões de fotocópias num microssegundo ou que um texto de 10 mil páginas seja traduzido para outra língua num segundo era um facto já aborrecido para os humanos, mas estes, os humanos, ficavam com o consolo de uma fotocopiadora não se pôr a inventar, por contra própria, discursos ou teorias. Mas isso acabou. A aprendizagem entrou no ADN algorítmico das máquinas e dali não sairá.

Nem os períodos áureos de alguns meses da infância, em que o humano acelera vertiginosamente a velocidade de aprendizagem, se assemelham à velocidade da máquina. Comparada com a capacidade de aprender da inteligência artificial, os humanos são intelectualmente e infinitamente coxos; o adjetivo sapiens que acompanhou, talvez imerecidamente, o humano durante muitos séculos será derrotado por KO; as máquinas, sim, serão sapiens, máquinas sapiens, a nova espécie que por aí começou já a dar os primeiros passos.

3.

Talvez o que reste seja a ternura — ou a gentileza. John Berger, um grande escritor, definia gentileza como aquilo que nos faz tratar bem as pessoas porque sabemos que um dia elas vão morrer. A gentileza é a delicadeza de um mortal em relação a outro; o puxar modesto da cadeira para o avô se sentar sem esforço; o pequeno toque na boca do amigo que, sem perceber, tinha manteiga no canto dos lábios — e que com esse toque subtil desaparece.

Serão estas delicadezas, quase insignificantes — de alguém que trata o outro como um mortal, objeto de cuidado e proteção —, que restarão.

O que resta, então, ao humano? Em síntese: o corpo, a gentileza, a possibilidade de dançar até sem música, etc.

Infelizmente, dirão uns; felizmente, dirão outros: só o corpo, os seus sensores e a sua potência para a gentileza são verdadeiramente humanos; a inteligência já não.

Que o humano consiga ser então, pelo menos, o mais gentil da Criação.


Gonçalo M. Tavares. Revista Expresso, Semanário#2638, de 19 de maio de 2023



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