Amizade, programação, amor e cegueira

 
















O REINO DA INTELIGÊNCIA É VASTO, MAS NÃO DECISIVO. QUANDO AS PAIXÕES FOREM PROGRAMADAS, O HUMANO ESTARÁ ENTREGUE À MÁQUINA — E AÍ, SIM, SERÁ UMA RENDIÇÃO TOTAL

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e perguntares ao ChatGPT como te poderás apaixonar, ele ficará, se for sensato, de boca calada — isto é, de ecrã vazio, sem responder — pois nenhuma palavra, ou fórmula, é capaz de pôr em movimento aquilo que é um dos enigmas básicos dos humanos, um dos mais antigos. Um humano apaixonar-se entra no campo do mundo não programável e não planeável; podes planear fingir-te apaixonado, não podes planear apaixonar-te. A paixão, como os antigos gregos bem sabiam, não parte de uma decisão, é algo que acontece ao humano em modo passivo: paixão, pásion, passional e passivo, tudo palavras da mesma família, origem comum que já esquecemos. Alguém ou algo decide por ti; quem ou o quê, eis o enigma.

1.

Imaginar, então, por paradoxo, a paixão como resultado de uma aplicação informática que alguém nos colocou no organismo quando estávamos distraídos a ver cinema ou a apertar os atacadores. Algures, então, no organismo sóbrio, uma aplicação técnica a funcionar em vez da flechada que o sempre jovem Cupido antigamente enviava direto aos órgãos humanos mais recetivos.

Imaginar que, para o final do amor, em contraponto, bastaria desinstalar essa aplicação, tal como para ele começar — o processo amoroso — bastou uma instalação simples de um qualquer informático apanhado na esquina. Os programadores técnicos, portanto, a substituírem as bruxas que começavam e terminavam amores à distância, com ervas aromáticas e rezas extravagantes. Trocas as ervas e os feitiços por combinações de zeros e uns, eis a racionalidade do século técnico a afastar-se cada vez mais do reino da botânica e da linguagem capaz de, por via de sílabas sonoramente potentes, mudar o sentido dos acontecimentos do mundo.

O reino da inteligência é vasto, mas não decisivo. Quando as paixões forem programadas, o humano estará entregue à máquina — e aí, sim, será uma rendição total.

Vejo já os exércitos humanos, de mãos levantadas, e a bandeira branca bem alta, a aproximarem-se da Máquina e dos seus vitoriosos ecrãs. Se controlas as minhas paixões, controlas tudo.

2.

Um vídeo tocante — (tocante: que toca, que abana, que acorda o corpo que pudesse estar dormente ou ensonado. Uma coisa tocante é algo que ganha mãos, mesmo que não as tenha. Uma música tocante, uma palavra ou um objeto tocante: tudo o que toca tem mãos, mesmo que só simbólicas. E o toque mais forte é aquele que acorda o ensonado).

Mas sim, um vídeo recente, bem tocante. Um jogo de futebol decisivo — julgo que do Liverpool, mas não tenho a certeza — e dois amigos lado a lado nas bancadas. Dois amigos, sim, mas um tem os olhos estranhamente bem abertos, as pupilas em cima como se fossem uma lua qualquer que está a desaparecer para o interior da cara, para trás das sobrancelhas — esse olhar de alguns cegos que parece estar já focado no que se passa dentro da própria cabeça ou no alto céu, desistindo de se virar para a frente, para a realidade aparente do mundo. Mas o que se passa então com aqueles olhos? Percebemos já, sim, é cego. E depois entendemos melhor o que sucede naquele baile de pés parados a dois. O amigo do amigo cego está a falar-lhe ao ouvido e não se trata de um segredo — está a relatar-lhe o jogo, a relatar o que acontece no campo de futebol ali à frente. O cego está ali, sente o ambiente do estádio e o amigo também ali, junto ao ouvido, como se fosse um anjo sonoro a relatar-lhe o jogo em direto.

Que estranha imagem, que bonita imagem. Uma espécie de amizade mitológica: o amigo relata ao cego aquilo que vê — e o mais forte nisto é não estar a relatar algo de essencial, uma aparição religiosa, por exemplo — mas um simples jogo.

Imagino isto, mesmo para os que veem: ter um amigo junto ao ouvido que vai esclarecendo aquilo que não percebemos. Uma espécie de sábio com cabeça, tronco, membros e sapatos que ali vai, ao nosso lado — talvez eventualmente invisível para os outros — e nos vai relatando o que acontece neste invulgar jogo que é estar vivo e que, em tantos momentos, não conseguimos também perceber.

No vídeo, vemos depois o momento de um golo, e como os dois celebram, o cego e o seu amigo. E é forte. Como se a alegria tornasse os dois cegos — e talvez sim; ou fizesse por momentos o cego recuperar a vista.

Imagino uma cena mitológica em que um amigo abdica da sua visão para acompanhar o amigo cego; ou um deus qualquer que vá por ali a passar e ao ver uma tão potente amizade faça o milagre imediato de pôr o cego ver.

Uma amizade capaz de curar uma cegueira, milagre ocorrido num estádio de futebol, eis um possível mito moderno, quase banal, quase religioso, quase extraordinário.

Imagino, por fim, um golo essencial, decisivo, capaz de fazer um cego, no estádio, recuperar a visão.


Gonçalo M. Tavares, Revista E, Expresso Semanário#2640, de 2 de junho de 2023


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