Que bela é a guerra quando vista de cima


 

 

 Apocalíptico, Guerra, Perigo, Apocalipse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O SÉCULO XXI PARECE REPETIR O SÉCULO XX, NUMA IMITAÇÃO TOSCA MAS PERSISTENTE

P

or vezes, por distração antropológica, vejo em direto a baba que sai dos queixos de estrategas militares diante das imagens, vistas do sofá para o ecrã, da guerra na Ucrânia e dos mapas que mudam, um centímetro para lá ou para cá.

1.

Mudanças no mapa que, muitas vezes, significam mil mortos para cá ou para lá; a mudança das linhas dos dois exércitos, assinalada nos mapas, é evidentemente feita por cima de cadáveres, mas cadáveres não visíveis para não estragar o desenho ou a bela projeção, na tela eletrónica, das linhas a vermelho; um traço, um desenho, por cima dos mortos — e esse traço é feito em direto sobre sapatos em bicos de pés de tão contentes. O exército russo avançou para aqui; o ucraniano avançou a sua linha para ali. E parecem meteorologistas a falar das nuvens ou dos ventos. Tão felizes que só não dão saltinhos em direto porque apesar de tudo o pudor ainda tem algum peso.

2.

Mas, sim, os futuristas fascistas, em forma contemporânea modesta, aí estão, de novo, elogiando as máquinas militares e as batalhas.

As descrições de algumas armas contemporâneas em direto, na televisão, são tão assustadoras que quase são cómicas, tão cómicas que quase são deprimentes. Salivantes descrevem uma arma como alguém com desejo descreve o corpo da mulher ou do homem amados — com uma minúcia anatómica que só existe nos apaixonados e nos obsessivos.

Lembro os versos de Apollinaire:

“O silvo dá-me mais prazer

Que um palácio egípcio

O silvo das trincheiras.”

Imagino esses generais adormecerem, como meninos, aos sons dos silvos das trincheiras, melodia metálica que adormece os olhinhos cansados do General Máximo das Máximas Estratégias.

Nada disto é novo, e realmente o século XXI parece repetir o século XX, numa imitação tosca mas persistente. Pandemia e, agora, a guerra.

Em 1915, há pouco mais de 100 anos, Boccioni, pintor e escultor italiano, alista-se como voluntário pela Itália na I Guerra, influenciado pelo ideólogo Marinetti, o FF, futurista-fascista, que defendia “a guerra como higiene do mundo”. Defendia a guerra, diríamos, como se esta fosse um empregado de limpeza que arruma os objetos do mundo no seu lugar; que arruma, no fundo, os países e os povos do mundo no seu lugar; uma higiene, diríamos, que atua nas fronteiras dos países, alterando-as e deslocando parte das populações como uma vassoura exata afasta o pó que incomoda com a sua neblina castanha e os seus ácaros: um pouco para aqui ou para ali; é preciso arrumar os povos e os países.

A guerra, então, como algo quase sublime que arruma as fronteiras e coloca-as no sítio certo — eis o que defenderiam provavelmente os futuristas possuidores de um ponto de vista aéreo.

Se subirmos muito, e podemos experimentar isso pela janela de um simples avião, os países deixam de ter pessoas, e passam a ser superfícies e linhas — um desenho, portanto, que a guerra, pode retocar, melhorar. Eis a visão futurista-fascista lá de cima.

Nesse ano, 1915, Boccioni, um dos artistas futuristas italianos mais importantes, escreve uma carta para a amante, e diz: “A guerra é uma coisa bela (...). Nas montanhas até parece uma batalha com o infinito. Grandiosidade, imensidade, vida e morte! Estou feliz!”

Num belo livro, “O Momento Futurista”, Marjorie Perloff lembra a terrível frase do poeta Blaise Cendrars: “Esta guerra cai-me como uma luva”, referindo-se à guerra entre França e Alemanha. Terrível frase, já que Cendrars, mais tarde, em 1915, perdeu o braço direito numa batalha.

Anos depois desta tragédia pessoal, aparentemente conformado, Cendrars escreve a um amigo: “Tens razão, duas pernas e uma mão bastam.” E começou a escrever com a mão esquerda.

3.

Mas, talvez duas pernas e um braço não bastem. A adoração pela tecnologia é paradoxal, sempre — e no poeta Cendrars isso foi evidente: ele quer um braço mecânico, mas rejeita-o; isto não é o meu corpo, é pura imitação metálica. Ele precisa de um braço-máquina, mas detesta o braço-máquina.

Escreverá sempre com a mão esquerda, até ao final dos dias; a única mão humana que lhe resta.

4.

“Esta guerra cai-me como uma luva”, eis a frase de Cendrars, antes de perder o braço — tão terrível que é quase cómica, tão cómica que assusta.

Esta guerra cai-me como uma luva, quase dizem alguns estrategas militares na televisão; esta guerra cai-me como um gorro em dias de frio, quase dizem alguns estrategas militares na televisão; esta guerra assenta-me como um bom sapato, quase dizem alguns estrategas militares na televisão.

 

Gonçalo M. Tavares. Expresso, Revista E, Semanário#2642, de 16 de junho de 2023



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