A escultura: uma tentativa impossível?


 

 Mesmo sem sabermos bem o que é o tempo, sentimos na escultura um constante desafio ao tempo e um confronto ou uma consciência nítida da morte. Não, não se trata de arte tumular, mas de qualquer pedra erguida para lembrar um momento especial num tempo irreversível. Encontramos em Alberto Giacometti essa consciência da finitude e da impossibilidade

 

Texto de José Luís Porfírio

 

 

Tentando o Impossível, 1928 de Rene Magritte
René Magritte, “Tentative de l’impossible”, 1928


 

  











A

modernidade trouxe consigo uma aguda consciência de mortalidade, consciência que ultrapassa a da morte pessoal e individual — pois essa é uma muito antiga senão a mais antiga das tradições artísticas — para entrar na consciência e no sentimento da morte da própria arte ou do seu suporte físico.

Foi Marcel Duchamp (1887-1968) quem no livro-entrevista de Pierre Cabanne (“Conversations avec Marcel Duchamp”, Belfond, 1967) fala da degradação de muita pintura impressionista que o marcou bem cedo enquanto jovem pintor.

Fora de toda e qualquer especulação, Duchamp testemunha não uma qualquer ideia ou ideologia sobre a decadência, mas verifica um facto: a degradação física irreversível de muita pintura da geração que o antecedeu. Desde que li essa longa entrevista, no ano da primeira edição do livro, fiquei convencido de que muita da operação estética de Marcel Duchamp procurava e conseguia, em muitos casos, uma intervenção no tempo e não no espaço, uma afirmação mental inscrita não na matéria mas na irreversibilidade do tempo.

Esta foi uma atitude fundadora de muitas outras que transformaram e transtornaram fortemente a arte ocidental numa arte da consciência que, pelas décadas de 1960 e 1970, fugiu do suporte físico para o suporte mental, para a ideia, para o conceito, para os fantasmas, ou para as ilusões, de um e de outro.

Porém, o abandono do suporte físico da obra nunca foi condição indispensável para uma meditação e uma consciência aguda do tempo e do desgaste físico que ele representa e, mais grave ainda, de um entendimento da arte plástica como uma tentativa impossível ou do impossível. Há autores que inscrevem essa consciência na matéria do seu trabalho — aliás, o título deste texto provém de uma pintura de René Magritte, “Tentative de l’impossible”, de 1928. Nesta pintura não deparamos com uma das imagens fascinantes características deste surrealista belga, muito pelo contrário, estamos perante uma imagem de uma grande banalidade aparente e sem qualquer fascínio visual, ou retiniano, para lembrarmos Duchamp. Num primeiro relance vemos um pintor (Magritte?) de fato completo e um modelo feminino nu, ambos de pé, frente a frente, num espaço interior neutro sem qualquer referência de ateliê. Imediatamente a seguir a interrogação instala-se, o pintor não olha o modelo porque modelo não existe, a figura feminina é a própria pintura que se ergue no espaço, i.e., Magritte não pinta sobre qualquer suporte visível, pois não há tela, ou tábua, ou parede para inscrever a imagem do corpo; o artista pinta sobre o vazio, ou sobre o espaço. Como sabemos isso? Assim que reparamos no corpo incompleto da modelo, pois falta-lhe o braço esquerdo, aquele mesmo que o artista está pintando nesse momento. Tentar o impossível, pintar sem a mediação de um suporte físico visível superando a ilusão, assim a imagem criada nesta pintura é, como sempre, uma ilusão; e é mais, pois se trata de uma ilusão da ilusão nas duas dimensões obrigató­rias do quadro de cavalete.

Passando para as três dimensões da escultura encontramos em Alberto Giacometti a noção dessa mesma tentativa impossível. Rui Chafes (n. 1966), escultor contemporâneo que “convidou” um escultor de outra geração, Alberto Giacometti (1901-1966), a entrar no espaço do seu trabalho (“Gris, Vide, Cris”), escreve no catálogo sobre “escultura da consciência”, afirmando-nos que “a enorme grandeza de Giacometti está na sua extrema e radical consciência, que o levou sempre a tentar e a falhar, e a considerar sempre a arte como uma tentativa votada ao fracasso, opção pelo quase nada, pela rarefação de presença”. Giacometti está, em termos de resultado, no polo oposto de Magritte, embora bem lúcido, vivendo e trabalhando a partir de uma idêntica consciência da finitude e da impossibilidade, construindo “uma espécie de fractal escultórico que nunca mais acaba de se ver, que nunca se conseguirá definir enquanto forma, sempre à beira de uma dissolução” (“O trabalho do tempo”, José Luís Porfírio, Expresso, 14 de novembro de 1998).

  E-Revista Expresso, Semanário#2649, de 4 de agosto de 2023. Ler artigo completo aqui.

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