O Surrealismo no centenário de Cesariny

 

Homenagem a Luis Buñuel, de Mário Cesariny, 1968
















AS QUESTÕES DO SURREALISMO ERAM TAMBÉM SÉRIAS E GRAVES — A MORTE E A POLÍTICA, POR EXEMPLO, NÃO ERAM NADA ALHEIAS A ESTE MOVIMENTO

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surrealismo terá aparecido bem cedo na história humana, segundo o poeta e ensaísta Apollinaire, numa explicação, ao mesmo tempo, lógica e maluca: “Quando o homem quis imitar a marcha, criou a roda, que em nada lembra uma perna. Ele fez assim surrealismo sem saber.”

O surrealismo é um pensamento que chega por outro caminho, vem rápido e fulminante por um minúsculo caminho de cabras. Esteve presente, segundo Apollinaire, na invenção da roda e talvez também, eis uma hipótese com que se pode avançar, na invenção do fogo, pois o primeiro fogo resulta de um gesto claramente surrealista: aproximar uma coisa de outra (duas pedras) e com esse choque produzir um terceiro elemento que ali não estava antes, o fogo.

Os achados verbais de Breton eram constantes, duas palavras como duas pedras que, uma contra a outra, produzem um fogo forte. São estes belos choques na linguagem que os surrealistas deixaram como herança, como é exemplo o extraordinário título de um dos livros de Breton: Peixe solúvel. Peixe que desaparece na água, não por qualquer transparência, mas porque se dissolve; peixe que, no fundo, é água — transforma-se o amador na coisa amada e o vivente no elemento onde vive. Peixe solúvel: com o simples choque de duas palavras, uma ideia forte.

Os surrealistas tinham também um certo vocabulário paradoxal com origem, não no choque, mas na mistura direta de duas palavras, criando assim, na química dos vocábulos, uma nova substância. Um exemplo: o Improvisto (termo lembrado por Tragtenberg): mistura, na música e na existência, do improviso do jazz com o imprevisto da vida. Um improvisto brilhante, eis o que podemos pedir ainda hoje, um improvisto capaz de reagir à surpresa com a música certa para as ancas bailarem ao ritmo das doidas circunstâncias.

Mas as questões do surrealismo eram também sérias e graves — a morte e a política, por exemplo, não eram nada alheias a este movimento.

Muitas vezes, a provocação aparentemente adolescente escondia uma ideia forte sobre o essencial. Por exemplo, num dos manifestos, Breton pedia para, quando morresse, ser transportado para o cemitério numa camioneta de mudanças. E, sim, a morte como a mudança de uma matéria de um espaço para o outro, defendia Breton.

Curioso que a palavra metáfora “deriva do grego μεταφορά, transferência, transporte para outro lugar”. Uma metáfora é, assim, no seu sentido original, o transporte de uma carga de um lado para o outro. Esta camioneta de mudanças que leva o corpo morto para o cemitério pode ser assim vista como uma metáfora de Breton — o que ele queria era dessacralizar a morte: a morte como um mero transporte de uma matéria.

Transportar o corpo morto como uma mobília que perdeu o uso mas não a aura, poderíamos dizer.

A aproximação do movimento surrealista ao comunismo foi, numa certa fase, bem forte — o escritor Aragon, depois de uma fase conturbada, disse, como outros, que “já não sabia o que significava a palavra ‘eu’”, e inscreveu-se no partido comunista. Uma bonita e sintética explicação político-verbal de uma decisão. Eliminar o ‘eu’ das frases e dos dias — eis uma opção radical. Uma utopia que começa nos pronomes pessoais, mas que muitas vezes fica só aí, na gramática.

Cesariny intervinha politicamente quanto baste, mas esse talvez não fosse o seu centro, ao contrário de outros surrealistas: “O homem que queria fazer uma revolução veio para aqui pensar nisso.” Para Cesariny, as relações humanas, amorosas ou não, eram o principal. Um simples cumprimento era, para Cesariny, “naturalmente rico de proteínas”. O poeta tinha um plano simples (muitas vezes não alcançado): “louvar o ser amado/ ter amigos leais/ escrever todos os dias/ ou dia sim dia não”.

E, acima de tudo, era um seguidor da tese “segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana tende a reduzir o indivíduo recetor ao estado de serpente fascinada”. Uma serpente fascinada e fascinante, Cesariny, dia sim dia sim — e no seu centenário também.

Gonçalo M. Tavares. "Os Cadernos e os Dias", E Revista Expresso, Semanário#2652, 25 de agosto, de 2023



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