Água sobre água | Crónica






 


O QUE É PESADO TEM EM SI A TEIMOSA OBSESSÃO QUE VEM DA FORÇA DA GRAVIDADE

A

sabedoria expressa-se pela frase que é síntese e, ao mesmo tempo, tem lá dentro muito espaço de pensamento.

Os provérbios populares são potências de pensamento.

Designados, por vezes, como sentenças populares, são muitas vezes isso mesmo: sentenças de um velho juiz que conclui rapidamente e se cala depois.

1.

Água sobre água nem suja nem lava.

Estamos assim: a água bebe-se ou deixa-se cair sobre as plantas ou então atira-se em direção à sujidade. Eis as suas funções. Há variantes, claro.

E todos os recursos mal utilizados são em parte isto: água sobre água.

Por vezes, observando de cima, assistimos a um sistema em fila de transporte de água para o mar e de areia para o deserto.

O esforço que o humano faz a carregar o pesado balde de água na direção desnecessária. Muito trabalho há no mundo, mas tontice ainda maior.

Gastar fortunas a levar um balde de água para o oceano Atlântico para que este não seque — eis a metáfora que ilustra certos investimentos.

2.

Águas mansas não fazem bons marinheiros.

Daqui se tira que se as águas ficarem sempre quietas nunca poderás saber se o capitão é bom ou medíocre.

Águas calmas são dominadas até pelos adormecidos.

Quando a turbulência começa, o capitão do barco pode ser quem menos se espera.

3.

Lugar do pesado é no chão.

O que é pesado tem em si a teimosa obsessão que vem da força da gravidade.

Tudo o que é pesado e é colocado em ponto alto acabará por cair.

Pode demorar uns minutos ou muitos séculos, mas cairá.

O peso de uma coisa é já a sua queda futura.

Se queres que algo não caia, torna-a leve.

O leve voa, o pesado cai.

Lugar do pesado é no chão.

4.

Há por aí muitos sujeitos sem predicados.

Frase que oscila entre lição de gramática e efeito de um lúcido sistema de observação dos humanos.

Os sujeitos sem predicados aí estão, distribuídos como ervas daninhas por todo o lado: obedecem inertes como um joelho a que se aplica uma pancadinha no ponto certo.

Não pensam nem decidem: são puros reflexos.

Os sujeitos sem predicados são valorizados como as máquinas fotocopiadoras. Funcionam ou estão avariadas.

5.

Há mais quem suje a casa do que quem a varra.

Sempre foi assim: para sujar não é preciso curso nem formação mínima.

Sujar e respirar são dois verbos humanos e biológicos.

O humano é o animal que suja.

As reações de protesto contra a ação humana que vai, por exemplo, devastando a natureza que ainda pode dar lucro são a reação possível a este animal que suja e que destrói, o humano.

Mas há quem varra, sim.

Dez sujam, um limpa. Eis outra hipótese de síntese.

E sempre foi assim, nunca houve equilíbrio entre o número de pessoas que sujam e o número de pessoas que limpam.

Mas, quando zero pessoas limparem, o apocalipse entra.

6.

Hoje em dia, quem menos corre é quem mais caminha.

A corrida como inimiga da caminhada.

Se corres, não andas. Se andas, não corres.

Quando não sabes exatamente o destino, correr é um disparate, claro. E correr a grande velocidade é maior disparate ainda, claro.

Em tempos turbulentos, andar é mais ajuizado do que correr.

7.

E não há tempo que não seja tempo turbulento, eu diria.

8.

E voltemos ao início. Água sobre água nem suja nem lava.

Todos os recursos humanos do mundo, quando usados por um distraído, podem transformar-se num organizado sistema de desperdício.

O que é política? Em parte, isto: tentar perceber onde está a sede e onde está a sujidade. E para aí levar água, com urgência.

Olhamos em volta.

Desperdiçar com maior eficácia parece por vezes ser um objetivo. Desperdiçar cada vez melhor.

Água sobre água nem suja nem lava.

Gonçalo M. Tavares. Revista E, Semanário Expresso#2659, de 13 de outubro de 2023


Comentários