Fernando Pessoa em caleidoscópio

 


Miguel Borges e Victoria Guerra em “The Nothingness Club — Não Sou Nada”, de Edgar Pêra




“Não Sou Nada — The Nothingness Club” é uma abordagem cinematográfica sem par à obra do génio das letras em tumulto com os seus heterónimos, um mergulho na psique de Pessoa, trip delirante do ego. Um filme único. Estreia-se quinta-feira

TEXTO FRANCISCO FERREIRA

A

o longo destes 30 anos de trabalho, que são um 'espanto' incomparável na história de cinema (“O Espectador Espantado” é, de resto, o título da sua tese de doutoramento), ao longo desta jornada em que sempre se preferiu do autor os capítulos de experimentação pura, única, inimitável, e dos quais só o “Doktor Ego” tem acesso ao copyright, houve momentos, espaçados, nem sempre conseguidos, em que Edgar Pêra se atreveu a trilhar o caminho de um cinema mais narrativo e enquadrado, recorra-se às aspas, num ‘gosto comum’. “Não Sou Nada — The Nothingness Club” é porventura a fusão mais potente de Pêra destes dois campos, o experimental e o narrativo, em jeito de thriller psicológico que se vai definindo como tal. Não é de todo a primeira vez que Pêra recorre à literatura como ponto de partida, recorde-se a inspiração em Almada Negreiros do fulgurante “SWK4”, ou “Rio Turvo” e “O Barão”, baseados em Branquinho da Fonseca, como exemplos. Esta entrada no complexíssimo universo de Fernando Pessoa tem talvez o condão de marcar um antes e um depois no percurso do cineasta. Que é uma ego trip, como Pêra explorou noutras ocasiões, e agora que se volta a pensar nisso, nove meses depois do filme ter sido visto em Roterdão e em vésperas da sua estreia comercial em sala, a pergunta que fica no ar é por que raio esta equação Pessoa-Pêra, de tão evidente que parece, demorou tanto a ser levantada. De facto, e ainda que de forma oblíqua, todo o cinema de Pêra se deu sempre à aventura interior, à confrontação e à fragmentação dos eus, à modernidade da heteronímia (não é apenas isso mas também é isso), independentemente do facto de, no outro lado, estar o nosso maior homem de letras, o vulto da literatura mundial, por tantos considerado intraduzível por imagens e sons. A ideia que se quer sublinhar é a de que há, se calhar sempre houve, uma coerência entre escritor e cineasta, “Não Sou Nada...” tem sobre este aspeto várias cartas a pôr na mesa.

Edgar Pêra chamou a “Não Sou Nada” um “cinenigma”. No Nothingness Club do título, inventa-se uma redação editorial que refere a Orpheu mas que não se restringe ao tempo da realidade histórica da revista de curta vida (1915) e que avança, sem oráculos nem explicações, pelas décadas seguintes, até aos anos 30 e 40 (há um momento em que são parodiados pelas personagens um discurso de Mussolini e outro de Salazar). Nessa redação, ganha corpo Pessoa (um Miguel Borges à altura do protagonismo que lhe é exigido) e são convocados vários dos seus múltiplos heterónimos, Álvaro de Campos (Albano Jerónimo), Ricardo Reis (Vítor Correia), Alberto Caeiro (Miguel Nunes) e Bernardo Soares (Carlos Correia), os mais importantes, claro; também António Mora (António Durães), o Barão de Teive (Paulo Pires), o médico psiquiatra Faustino Antunes (Marco Paiva), o astrólogo Raphael Baldaya (Miguel Moreira), Alexander Search (Lawrence Alliston-Greiner); tocamos apenas em algumas das mais de 40 personagens do filme e não é possível esquecer-se aquela que fecha o trio principal com Pessoa e Álvaro de Campos, Ophelia Queiroz (grafada como Ophelya), a namorada conhecida, a fonte de desejo idealizado e de frustração, angélica no manicómio, insinuante como femme fatale do noir nos corredores da redação, ela que, nem fantasma, atravessa no filme vários tempos, não necessariamente narrados por ordem cronológica — e é um papel fantástico de Victoria Guerra, nunca antes se gostou tanto de ver a atriz no ecrã. Ao convocar praticamente toda a sua trupe fiel de atores, juntando-lhe elementos novos (Victoria), Edgar desenvolve então a ideia de que Pessoa, ou alguém por ele (mas no fundo só Pessoa existe, a voz de Miguel Borges sai por vezes da boca de outras personagens), começa a desembaraçar-se dos seus heterónimos, ou então que há um deles (e cedo se percebe qual é a persona mais forte) a querer ganhar preponderância sobre os outros, disposto que está a eliminar a ‘concorrência’.

Edgar rodou “Não Sou Nada...” durante a pandemia na Fábrica do Rio Vizela, Vila das Aves, perto de Guimarães, onde a produtora Bando à Parte está sediada, descobrindo no norte do país um décor notável para uma ideia de redação de época na primeira metade do século passado que oscila com as cenas de exteriores. “Estávamos cercados pela pandemia mas o cerco ajudou-nos a discutir ideias, que é o que eu mais gosto de fazer nos filmes”, contou-nos o cineasta numa manhã muito fria de Roterdão, em janeiro. “Este encontro com Pessoa tinha que acontecer a uma dada altura, quando ‘O Livro do Desassossego’ foi finalmente publicado nos anos 80, quase 50 anos após a morte de Pessoa, mudou radicalmente a minha maneira de olhar para o mundo. Há muito que o cito, ele está sempre nas minhas listas de escritores favoritos, o ‘Sr. Ego’ e os seus desdobramentos à procura do primeiro amor no meu filme ‘A Janela (Matyalva Mix)’ já eram inteiramente pessoanos. E a questão da heteronímia é vasta, encontro-a também muito num dos meus autores de cabeceira, na BD do finlandês Tommi Misturi, por exemplo.” “Não Sou Nada...” vai mais longe, é uma assemblage extraordinária da matéria literária em cruzamento de várias obras pessoanas, 95% do texto — Edgar frisou a percentagem — é texto de Pessoa, “e posso dizer que no processo fui eliminando quase todas as bengalas que não vinham dessa fonte. É impossível resistir aos textos de Pessoa. Na rodagem tinha sempre um livro qualquer dele para abrir e lançar uma frase surpresa aos atores. Esta dinâmica adequa-se muito à minha maneira de trabalhar, o que acontece de inesperado é o fundamental, essa é a realidade da rodagem. No filme, imaginei um mundo em que Pessoa tinha todos os seus heterónimos ao seu serviço, atribuindo-lhes as intermináveis ideias que lhe vinham à cabeça, essa infinita obra pessoana que ficou por concluir. Já Ophelia é o antivírus, está ali para desfragmentar a cabeça de Pessoa”.

Há muitos anos, Edgar disse-me que no seu cinema, perguntar porquê já é perder o comboio. É atirar-se ao rio primeiro, depois logo se vê quem sabe nadar. Mas esta bela ideia é uma aparência, há um trabalho infernal por trás de “Não Sou Nada...”, uma direção que sabe o caminho que quer tomar, uma loucura muito humorada e uma enorme intuição no momento de construir um filme em conjunto com os seus intérpretes e a matéria literária em causa. Não é pois deslocado dizer-se que este é um filme possuído, mediúnico, absorvente como o prazer de uma charada — e não há outro igual.

Revista E, Semanário Expresso#2660, de 20 de outubro de 2023

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