Breves notas e breves fantasias sobre o calendário e o fim do ano

 






SE A INTELIGÊNCIA FOR MEDIDA PELA CAPACIDADE DE RESISTÊNCIA NO TEMPO, A MONTANHA É A VERDADEIRA SAPIENS. TUDO O QUE NÃO TENHA A VER COM A LONGEVIDADE SÃO TRUQUES TÉCNICOS OU INTELECTUAIS, NÃO SÃO O ESSENCIAL

Aduração da amizade não deve ser medida por um cronómetro, claro.

1.

As medições do tempo usam dois instrumentos base — cronómetro e calendário.

O cronómetro mede, quase sempre, o irrelevante; o calendário mede, por norma, o essencial.

Perto do final do ano, o cronómetro começa a acelerar em direção a um novo calendário.

2.

Não faz sentido usares um calendário para contar o tempo de uma corrida de 100 metros.

Mas imagino um louco a fazer isso. Imagino juízes malucos a medirem corridas de velocidade na natação, no atletismo e nos vários desportos olhando para o calendário como quem olha para um detetor de altas velocidades.

E, sim, tantas vezes acontece isto — medirmos ou decidirmos sobre as coisas com instrumentos inapropriados.

Um exemplo: quando se vota por instinto e não de forma racional.

Usemos o instinto para responder a uma raquetada do adversário num jogo de ténis, mas não usemos o instinto num jogo de xadrez ou numas eleições. Não dará bom resultado.

O instinto não é, de facto, um bom instrumento político para se usar numa decisão que pode ter efeito durante quatro anos.

3.

Voltemos ao calendário.

O calendário do ano seguinte impõe sempre respeito, como se fosse um oráculo por preencher.

Para os que acreditam no destino, o calendário do próximo ano já está preenchido com uma tinta que não vemos. Uma tinta divina ou naturalmente impercetível aos olhos humanos.

4.

O calendário de papel — para colar na parede —, ainda não inaugurado, faz parecer que o tempo é um espaço longo, quando o tempo não é espaço nem é longo. O tempo não é uma caminhada horizontal, mas sim uma forma de cair.

O tempo que passa é a distância que vai desde a tua queda no mundo, lá de cima, ao nascer, até lá abaixo, ao último momento. O tempo humano é vertical, de cima para baixo, não horizontal.

5.

Imagino ainda um calendário contemporâneo ajustado à velocidade de acontecimentos por dia.

Em vez de termos um calendário anual teríamos um calendário diário — preencher o dia até parecer que o dia demora um ano.

6.

Há calendários que não são feitos de papel, mas sim, por exemplo, de clima ou de terra ou do tipo de fruta que cresce nas árvores. O calendário da natureza não é tão exato como os calendários que compramos na papelaria, mas em compensação o tempo da natureza dá literalmente frutos.

7.

Os jardins da cidade são calendários da natureza que resistiram no meio do tempo urbano. Dois calendários muitas vezes dessincronizados. O dia do relógio não coincide com o dia da terra. No calendário, por vezes, assinala-se o inverno, mas o clima não concorda.

8.

E sim: a velocidade paciente da montanha, a velocidade acelerada e quase suicida de certas rosas e a velocidade ansiosa e nada tranquila dos humanos.

Dentro da própria natureza há calendários bem diferentes.

O calendário das montanhas, por exemplo, não é anual, remete para um século ou para um milénio.

9.

Imagino um outro louco, com um cronómetro de desporto, diante de uma montanha. A tentar medir o tempo que uma montanha demora a cair. Imagino que loucos sucessivos vão morrendo e sendo substituídos nessa função de, com um cronómetro nas mãos, medirem o tempo de uma montanha.

10.

Certas partes da natureza devem assinalar a passagem de 100 mil anos, tal como nós, humanos, assinalamos a passagem de um ano.

Uma certa medida de modéstia devia, pois, nascer nos arrogantes cidadãos a partir desta simples perceção. A montanha que nada entende de algoritmos ainda vai ficar por aí, quando todos os tetranetos dos atuais mestres da criação de algoritmos já tiverem falecido.

Respeito pelos mais velhos, respeito pela montanha.

11.

Se a inteligência é medida por testes de QI e pela capacidade de construção de artefactos técnicos, então não há dúvidas de que o humano está no topo da Criação. Mas se a inteligência for medida pela capacidade de resistência no tempo, a montanha é a verdadeira sapiens. Tudo o que não tenha a ver com a longevidade são truques técnicos ou intelectuais, não são o essencial.

12.

O final do ano aproxima-se. Os humanos estão excitados e impacientes. A montanha não dá por isso.

Gonçalo M. Tavares. E-Revista Expresso, Semanário#2669, 22 de dezembro de 2023


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