O que está para vir

 



 
Sándor Márai (1900-1989), húngaro, nasceu na Eslováquia e morreu nos EUA/GETTY IMAGES



“Libertação” do húngaro Sándor Márai, mais do que uma ficção, é um relato vívido, escrito em 1945, sobre o fim da ocupação alemã e a chegada dos soviéticos

O

que justifica o inesperado sucesso póstumo do húngaro Sándor Márai (1900-1989)? Uma elegância elegíaca, talvez, uma certa mestria emocional. Ou a circunstância de ter sido um pequeno aristocrata com simpatias comunistas na juventude e que viveu contraditoriamente as grandes tragédias do século.

A esse respeito, “Libertação” (romance escrito em 1945, mas inédito até 2000) não podia ser mais significativo. É uma ficção em esboço, mas um testemunho impressionante sobre o fim da ocupação alemã e a chegada dos soviéticos. Mais preocupado em documentar um momento do que em efabular, Márai deixa tudo vago, não sabemos grande coisa sobre a protagonista, jovem enfermeira, ainda menos sobre o seu pai, um cientista perseguido pelos nacionalistas húngaros, ou sobre um ex-namorado que fugiu. E as personagens secundárias são pouco mais que espectros ou símbolos: um “paralítico”, um “russo”, etc.





LIBERTAÇÃO
Sándor Márai
D. Quixote, 2023


O que é vívido é o cerco a Budapeste, no Inverno de 44-45: “(…) os soldados, os canhões, os tanques, as barricadas, as pessoas, toda a cidade nas caves e casas obscurecidas, todos estão à espera, mas nada podem fazer; algo está prestes a acontecer, o tempo chegou ao fim.” Não esperam os bárbaros, como no célebre poema de Kavafis, mas quem os livre dos bárbaros. Com o Exército Vermelho às portas da cidade, um grupo de homens e mulheres refugia-se numa cave fedorenta, meio plataforma do metropolitano, meio cinema degradado. Cada um trouxe o que conseguiu, um colchão encardido, documentos falsos, uns trastes, umas bolachas. É uma “vida de roedor” ou “de curral”, mas estão protegidos, acompanhados, vivos.

Da superfície vêm explosões, combates, rumores, histórias das milícias fascistas, de resistentes, do genocídio dos judeus. E no subterrâneo cada um reage a isso de acordo com as suas possibilidades, há desvairados, afásicos, sábios obtusos. Todos esperam os russos, os “bolchevistas”. Mas quem são os russos? Ou os bolchevistas? Amigos dos oprimidos, leitores de Tolstoi, sofisticados e sedutores, bandos asiáticos, libertadores, novos invasores? O texto de Márai tem momentos fortes, como o repentino som de um gramofone na desolação do abrigo, ou os cadáveres cobertos com papel de embrulho, na falta de lençóis; e se não se distingue enquanto ficção, faz uma pergunta sobre a qual em 1945 só se podia ficcionar: depois da guerra vem a paz, ou “o que está para vir” é guerra ainda?

Pedro Mexia. E-Revista Expresso, Semanário#2669, 22 de dezembro de 2023

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