Você tem um grave problema nos olhos

 









PEDE-SE AO ESPECTADOR, COM INTERVALO DE MINUTOS, APREENSÃO E RESPEITO PELA DOR DOS OUTROS E LOGO A SEGUIR EUFORIA

A

s casas de muitos países estão a tornar-se casas-fantasma; vazias 363 dias por ano, porque, apesar de tudo, os milionários gostam de ter um fim de semana por ali, em circulação para outra casa qualquer noutra parte do mundo.

Outras vezes, as rendas obrigam os humanos a estratégias de difícil alpinismo económico — chegar lá acima, suportados por cordas familiares e esforço bem acima do tolerável pelo limitado coração humano.

Na Grécia, dizem as notícias, os habitantes colocam cartazes nas portas de alguns prédios anunciando pragas de percevejos para afastar os turistas do arrendamento local.

Os cartazes falam de percevejos malignos, provocadores de maleitas devido à sua baba esquisitoide, percevejos que não perdoam um sujeito que não fale fluentemente grego e que seja portador de um mapa, mesmo que eletrónico. O cartaz alerta ainda para a urgente necessidade de evacuar o prédio e, como sabemos, há cartazes que de imediato provocam comichão em distintas partes da pele, pele que é estranhamente muito influenciada pelo que lê ou ouve.

Seria curioso, aliás, estudar a influência das palavras — que lemos ou ouvimos — no nosso estado de saúde. O corpo é uma unidade que não é indiferente ao que vê, ouve, cheira, saboreia ou toca. Mas sempre pensámos que o que vemos e ouvimos estará distante e por isso não despejará nenhuma doença sobre a frágil biologia que temos. Porém, na verdade, já há muito sabemos que os sons violentos podem tornar surdo um ouvinte e a luz excessiva do sol tornar cego quem se atrever a fixá-la tempo demais. E segundo parece, na Grécia, as palavras estão a ter esse estranho efeito mágico: alguns turistas estão a sair do país por lerem um cartaz sobre uma “praga de percevejos”, uma falsa notícia eficaz.

Não há pragas, como já confirmou o Ministério da Saúde grego, nem sequer um unicozinho percevejo, mas há, sim, rendas altas, que passaram em pouco tempo para o dobro, e há ainda uma forma de resistência que começa nas palavras, nestes cartazes a anunciar uma epidemia falsa, mas que evidentemente, em vários países, não ficará por aqui. Primeiro palavras, depois o grito, por fim a violenta ação física. Nem todas as guerras contemporâneas usam drones, bombardeamentos e equipamento militar. Há umas que usam leis e contraleis, resistência passiva ou bem agressiva por parte dos habitantes. A Europa caminha para um novo conflito, uma guerra dos cidadãos pela habitação.

1.

Como sabemos que o que vemos nos perturba — quer sejam as palavras num cartaz quer sejam imagens na televisão —, escolher o que vemos é quase tão importante como escolher companhias. E é de facto escolher companhias visuais. E escolher companhias auditivas.

Com que sons estiveste hoje à tarde? Com que imagens passaste hoje a noite? Não são perguntas insignificantes, pelo contrário.

Deveria existir, assim, uma preparação para ver imagens da guerra tal como há uma preparação — claro, noutra escala trágica — para a guerra propriamente dita. E nenhum organismo se prepara num segundo; a preparação é isso mesmo: um treino gradual ao longo do tempo.

O duplamente perturbador nas imagens de guerra é que, por vezes, na televisão ou na net, aparecem entre uma canção brejeira, uma declaração política com vários “efetivamente” ou uma conversa para uma manada de bois dormirem — ou então, essas imagens terríveis que muitas vezes nos fazem pôr a mão à frente dos olhos, surgem, pelo mesmíssimo apresentador que anunciou “imagens que podem chocar os espectadores”, cinco minutos antes de um golo descrito como “absolutamente qualquer coisa de inolvidável”. Pede-se ao espectador, com intervalo de minutos, apreensão e respeito pela dor dos outros e logo a seguir euforia.

É o momento para levantar os braços em júbilo ou para tapar os olhos?

Estão de tal forma dinamitadas as emoções, pela velocidade de imagens que pedem de nós reações tão distintas, que o corpo aos poucos vai ficando orgânica e emocionalmente informe. A velocidade de transições afetivas que as diferentes imagens exigem vai fazendo dos humanos amebas emocionalmente ignorantes ou amorfas. “Socorro, não estou sentindo nada”, cantava uma artista brasileira.

2.

Mas sim. Não basta o aviso, um segundo antes, de que as imagens podem chocar, é preciso mais tempo. E diga-se, o verbo físico é claro, apesar de já o esquecermos: imagens que “chocam” são literalmente imagens que batem fisicamente contra nós, contra os nossos olhos, contra a nossa pele e ossos, contra o nosso afundado coração, que tenta, lá ao fundo, manter-se minimamente estável emocionalmente; imagens que chocam como um automóvel choca com um corpo na rua. Dores distintas, estragos diferentes; mas de qualquer choque sobra sempre uma qualquer mazela; exterior ou mental.

“Qual é o melhor intensificador da visão: o telescópio ou a lágrima?”, perguntava um escritor-cineasta, Alexander Kluge.

Podemos ainda perguntar: os olhos atingem a sua intensidade máxima quando veem o que está muito longe ou quando se emocionam?

Os olhos não são apenas órgãos de ver, são também órgãos de chorar. Duas funções, portanto. E podemos pensar que existirão também, assim, dois tipos de cegueira, a que não vê nem ao perto nem ao longe — o invisual, aquele que é desprovido de visões, mesmo que realistas; e haverá depois a cegueira afetiva, a cegueira do olho que não chora, que não se emociona.

Imagino o diagnóstico dos oftalmologistas emocionais: você tem um grave problema nos olhos, já não consegue chorar.

“Socorro, não estou sentindo nada”, socorro, não estamos sentindo nada.

Gonçalo M. Tavares. E-Revista Expresso. Semanário#2668, de 15 de dezembro de 2023


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